Hiperbólico, Lula atrapalha Galípolo no Banco Central
A última peça de marketing do governo teve como foco o próximo presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo. Ao lado de Fernando Haddad (PT) e duas figuras desimportantes para a política econômica – os ministros Rui Costa (Casa Civil, PT) e Simone Tebet (Planejamento e Orçamento, MDB) –, Lula disse que Galípolo terá "a maior autonomia que o Banco Central já teve".
Esse é o mesmo autor de “quero fazer talvez o governo mais honesto que já houve na história desse país”, dita no longínquo 24 de janeiro de 2003, no Fórum Social Mundial.
Pode haver uma explicação psicanalítica para isso, mas não me atrevo. Ao usar uma hipérbole para bajular Galípolo, Lula autoriza a percepção de que os sinais de “maior autonomia” apontam, na verdade, para intensa interlocução entre políticos e o responsável pela saúde monetária do país.
Em seu livro “Oracles, Heroes or Villains: Economic Policymakers, National Politicians and the Power to Shape Markets”, George Shambaugh argumenta que o poder dos bancos centrais opera em dois níveis distintos: no primeiro nível, está sua capacidade formal de definir a política monetária; mas existe um segundo nível, talvez ainda mais crucial: sua capacidade de influenciar as expectativas dos mercados e reduzir incertezas sobre o futuro da política econômica. Este "poder de segunda ordem" - a habilidade de influenciar percepções e expectativas - depende não da autonomia formal do BC, mas da deferência que os políticos concedem aos economistas.
A intimidade de Galípolo com o Planalto e a Esplanada é preocupante. Shambaugh argumenta que a credibilidade de um Banco Central depende da percepção de que seus dirigentes manterão a independência técnica mesmo sob pressão política. No caso de Galípolo, sua associação com o governo - tendo feito parte da equipe do Ministério da Fazenda e mantido contato constante com o presidente Lula mesmo como diretor do Banco Central - pode minar o "poder de segunda ordem" que é essencial para a boa condução da política monetária.
Em um momento em que o país enfrenta pressões inflacionárias significativas, com o IPCA projetado em 5,02% para 2024 e 6% para 2025, e um dólar que já ultrapassou os R$ 6, a escolha de alguém tão próximo ao governo para comandar o Banco Central é questionável. Embora alguns possam argumentar que a proximidade de Galípolo com o governo possa facilitar a coordenação entre as políticas fiscal e monetária, a história econômica brasileira sugere que esse tipo de alinhamento resulta em desequilíbrios ainda maiores. Lembram-se de Alexandre Tombini?
A autonomia do Banco Central não é um fim em si mesma, mas um meio de garantir a estabilidade econômica e proteger a moeda nacional de pressões de curto prazo. Mesmo instituições formalmente independentes se tornam impotentes quando perdem a deferência dos políticos ou quando seus dirigentes se mostram mais preocupados em agradar o governo do que em manter a credibilidade técnica da instituição.
O cenário econômico atual exige um BC verdadeiramente autônomo. O desafio de controlar a inflação sem prejudicar o crescimento econômico e a geração de empregos - agenda explícita de Lula e Haddad - é praticamente impossível no curto prazo.
O vídeo de Lula "garantindo" a autonomia de Galípolo pode, ironicamente, ter efeito oposto ao pretendido: em vez de tranquilizar os mercados, explicita a proximidade problemática entre o futuro presidente do Banco Central e o Executivo.
Sérgio Praça é professor e pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV CPDOC). Doutor em Ciência Política pela USP, é autor de “Guerra à Corrupção: Lições da Lava Jato” e “Corrupção e Reforma Orçamentária no Brasil”