Inteligência artificial na pauta dos Brics
A inclusão da inteligência artificial entre os temas prioritários da reunião preparatória da Cúpula dos Brics, marcada para julho no Rio de Janeiro, foi uma importante reação à ostensiva aliança que se formou, mesmo antes da posse de Trump, entre seu governo e as big techs. De um lado, querem barrar as iniciativas regulatórias que se espalham pelo mundo para limitar, com base em leis nacionais, a atuação voraz e sem controle das plataformas digitais. De outro, querem impedir o avanço da China no desenvolvimento de tecnologias de ponta, muito especialmente no campo da inteligência artificial.
Na reunião preparatória, que aconteceu no final de fevereiro em Brasília, o Brasil, que está neste turno na presidência dos Brics, defendeu a necessidade de os países do bloco se unirem para trabalhar coletivamente pelo desenvolvimento da inteligência artificial em benefício de seus povos e impedir que apenas um punhado de oligopólios controle a tecnologia e se aproprie dos ganhos derivados de seus produtos e serviços, muitos deles resultado de dados de cidadãos capturados no mundo todo.
O texto apresentado pelo Brasil na reunião preparatória propõe ainda que a soma de esforços para o desenvolvimento de sistemas de IA seja feita a partir de plataformas de código aberto, fortalecendo o ecossistema da ciência e da inovação abertas. E uma política de governança de dados – eles são matéria prima para o desenvolvimento dos sistemas de IA – que, além de respeitar a privacidade e a segurança, garanta que os países de média e baixa renda também participem do mercado gerado pela economia de dados e se beneficiem de seus produtos e serviços.
No que diz respeito à economia de dados, a proposta brasileira vai além. Segundo reportagem do site Convergência Digital, a proposta prevê a criação de espaços de dados e bolsas de dados para organizar transações entre diferentes setores da economia. Para, no futuro, se estabelecer “um mercado regional comum de dados, baseado na troca entre plataformas digitais dos países membros”.
O roteiro traçado para a discussão, que leva em conta a importância crescente da economia de dados no cenário atual, tem como inspiração experiências que vêm sendo desenvolvidas em outros países, como a China. Tica Moreno e Luiz Zarref, em artigo publicado em Outras Palavras relatam que, desde 2021, a China desenvolve experiências sobre a exploração comercial de dados. Shanghai, por exemplo, tem uma Bolsa de Valores de Dados (Shanghai Data Exchange), um ecossistema de dados com protocolos, auditoria e comercialização de pacotes de dados, que devem ter transparência de sua origem e definição dos fins para os quais podem ser usados, em um processo regulado/controlado de capitalização.
Ali não podem ser transacionados, por exemplo, dados sensíveis, como os de saúde. Há outros 14 projetos, com diferentes modelos sobre como regular a extração e produção de dados e, concomitantemente, o acesso e comercialização dos mesmos. Duas características se destacam nos projetos: as empresas estatais são os principais agentes nessas experimentações e a monetização dos dados está majoritariamente vinculada à sua transformação e uso como bens públicos do Estado.
Compartilhamento
Essa visão de trabalho coletivo e compartilhado terá um papel muito importante para democratizar o acesso aos sistemas de IA e distribuir os benefícios decorrentes do uso desses sistemas na agricultura, educação, saúde, transporte, etc. E, ao mesmo tempo, para desenvolver políticas públicas para tratar adequadamente seus impactos sociais negativos no mundo do trabalho, por exemplo.
Defender uma ação coletiva do bloco dos Brics e propor levar esta discussão para o âmbito das Nações Unidas, com a implementação efetiva do Pacto Digital Global, é um passo mais do que acertado no cenário geopolítico onde as iniciativas, logo após a posse de Trump, foram monopolizadas pelos Estados Unidos.
De uma penada, o governo norte-americano, como relata James Görgen em artigo no Jota, baixou um decreto com sanções a países que adotarem iniciativas regulatórias contra as big techs estadunidenses, ou estabelecerem taxações; decidiu abandonar o acordo BEPS (do inglês Base Erosion and Profit Shifting), negociado no âmbito da OCDE para a taxação de grandes multinacionais (para algumas jurisdições o acordo começou a valer a partir de 2024); ameaça ampliar as restrições de acesso a bens estratégicos e sensíveis, como chips de alto desempenho para sistema de IA, na revisão prevista para este mês em março. E para não ficar atrás na fita do retrocesso, o dono da Meta (Facebook e Instagram), Mark Zukerberg, anunciou mudanças na política de mediação de conteúdo de suas redes sociais tornando mais flexíveis determinadas regras, o que significa que mais desinformação vai circular.
A iniciativa brasileira na presidência dos Brics, na defesa de desenvolvimento de IA a partir de um ecossistema de sistemas abertos, vem se somar ao caminho adotado pela empresa chinesa Deep Seep, que desenvolveu um modelo de linguagem de IA que teve um enorme impacto no mercado, provocando a queda das ações da Nvidia, líder estadunidense na fabricação de chips para IA, e de outras empresas de sistemas de IA. O que o DeepSeek R1 tem de revolucionário é que ele foi todo desenvolvido em um ambiente aberto, colaborativo, não proprietário, e seus desenvolvedores, ao explorarem novos caminhos e procedimentos, conseguiram o feito de produzir um modelo de linguagem natural (LLM, de Large Language Model) com um custo muito menor em relação aos similares das líderes estadunidenses.
O DeepSeek R1 não é o primeiro LLM desenvolvido em código aberto. Há outros. Mas é o único que custou muito menos, consumindo menos processamento e com menos impacto ambiental. Seu custo foi de 16 yuans por milhão de tokens (unidade básica de texto que os modelos usam para entender a linguagem humana) contra 438 yans por um milhão do ChatGPT da Open AI.
Disputa
Faz muito sentido os Estados Unidos estarem mostrando seus dentes para tentar manter a liderança na indústria de IA. A China vem logo atrás: ainda não domina a produção de chips especializados para IA, que já chegam a menos de 2 nanômetros (quanto menor a distância maior a capacidade de processamento) , mas já produz em escala chips para o setor automotivo e industrial (7 nanômetros). No ano passado, exportou US$ 139 bilhões em chips.
Para ampliar sua dianteira em relação à China, além de tornar mais rigorosas as dificuldades de acesso às tecnologias sensíveis, os Estados Unidos decidiram, desde o governo Biden, retomar fortemente os investimentos em IA. Os dois últimos anúncios envolvem investimento de US$ 500 bilhões, com participação de Oracle, Open AI e Softbank, como líderes, para construção de colossais centros de dados no Texas e uma aliança com Japão, Coreia e Taiwan, para manter a liderança entre aliados e levantar barreiras e sanções contra inimigos.
José Dirceu é um político brasileiro, advogado, consultor e militante de esquerda com uma longa trajetória no cenário político do país. Autor de três livros - Abaixo a Ditadura (1998), Tempos de Planície (2011) e Zé Dirceu - Memórias volume 1. iniciou sua militância política durante os anos de ditadura militar no Brasil, engajando-se no movimento estudantil, do qual foi líder entre 1965 e 1968. Foi deputado estadual por São Paulo, exerceu três mandatos de deputado federal,, e ministro-chefe da Casa Civil durante o primeiro Governo Lula, em 2003. Foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, seu secretário geral e presidente por quatro mandatos
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