Acostumada a mapear a violência com histórias, personagens e contagem de cartucho de balas — ela é diretora do Instituto Fogo Cruzado, que produz dados sobre a violência armada a partir da análise de tiros disparados—, a jornalista Cecília Olliveira mergulhou fundo na história de um ramo de negócios que, embora escusos, estão em franca expansão: as milícias. Cecília lança no sábado, 14, no Rio de Janeiro, seu primeiro livro: “Como nasce um miliciano”. O resultado é um intenso estudo sobre essa modalidade criminosa que saiu das comunidades cariocas e tem sido exportada para outras regiões do país.
Cecília, uma das fundadoras do site Intercept Brasil, tem longa carreira na cobertura de segurança pública, violência policial e direitos humanos. Neste livro, que sai pela editora Bazar do Tempo, a jornalista mostra como a academia de polícia acaba sendo um terreno fértil para que brotem os milicianos.
Por R$ 500 semanais, o miliciano ‘raso’ arrisca a vida e apavora comunidades inteiras. Tem dinheiro em jogo, mas tem muito de poder e virilidade. É o que Cecília Olliveira conta nesta entrevista.
Qual foi a ideia do livro? Por que tratar desse tema?
O tema das milícias é urgente já faz algum tempo. A CPI das Milícias, lá em 2008, já tinha mostrado que elas ase tornariam um problema ainda mais complexo e mais grandioso com o passar do tempo, se nada fosse feito. E, de fato, nada foi feito. Então, a gente está colhendo os frutos dessa omissão, dessa inoperância. O assunto foi se tornando cada vez mais urgente porque os impactos da ação das milícias foram ficando cada vez mais claros. Depois da CPI, eles se retraíram um pouco, mas no sentido de que apenas saíram dos holofotes, continuaram trabalhando tranquilamente nos bastidores. E, quando a gente começou a ver de novo muito mais notícias sobre as milícias, já era 2018, com a morte de Marielle Franco e Anderson Gomes.
Você disse que o livro também fez nascer a escritora. Como é isso?
Escrever livros é contar histórias de forma diferente, porque você precisa ampliar tudo aquilo que suprime no jornalismo. O leitor precisa ser ambientado e enxergar a história através dos seus olhos. Isso é um desafio quando você está acostumado a ser sempre muito conciso, usar frases curtas. Foi um desafio, mas bem enriquecedor. Acho que me fez ter essa capacidade de ser mais poética.
É um livro difícil de ler, de uma história muito dura?
Ele é instigante porque conta a história das milícias e de como uma pessoa decide sair de um concurso público, que é da polícia, e se junta à milícia. Apesar da dureza do tema, eu conto isso contando a história do Rio. A história é dura, mas a história do Rio também não é muito fácil. E é interessante porque a gente consegue ver muitos elementos do nosso cotidiano dentro dela, mas também deixa em aberto essa parte mais mercado, mais plano de expansão. Assim, não é uma história só do Rio ou só para o Rio, porque é um modelo de negócio de sucesso que está sendo exportado para todos os estados, de alguma maneira.
Para nascer esse miliciano, esse cara do concurso público, o que o empurrou?
Não é uma decisão com uma razão só ou com uma única vantagem. E isso porque a pessoa que decide entrar para a milícia, a depender de quem ela é na hierarquia, não vale a pena monetariamente, financeiramente. Paga-se pouco a depender do posto que você ocupa.
Um cara da milícia ganha menos que um soldado raso do tráfico?
É realmente um mercado que está pagando muito pouco. Paga R$ 500 por semana; é muito pouco. O que te faz arriscar sua vida por tão pouco dinheiro? Mas a resposta é exatamente que não é só sobre dinheiro, é sobre dinheiro também. Uma coisa muito importante, e que acho determinante nisso, é a questão da virilidade. Ser miliciano e ter aquela aura de homem forte, que tem poder de decisão, que é respeitado, honrado. A hora que ele passa, todo mundo conhece, faz reverência ou se esconde. Então isso é muito atrelado a poder.
É o poder na comunidade?
Isso. Tem muito a ver também com isso do poder. E isso já é plantado ali na academia, onde você aprende a ser um soldado. Você não aprende a ser um policial que age em uma sociedade democrática e que, legalmente, não está em guerra. Você forma soldados que são ensinados a resolver as coisas por si mesmos. A lei é uma coisa abstrata. Essas sementes da ilegalidade e da violência já são plantadas ali, semeadas já na academia de polícia, enquanto você ainda não cruzou essa fronteira. Mas é muito fácil de cruzar, porque você já não está agindo dentro da legalidade. Já não te é tão exigindo que você permaneça na legalidade. Pelo contrário, se você quer fazer tudo certinho, você é trouxa, você é otário, você é fraco.
Existe talvez um pensamento de que eles estão fazendo a coisa certa?
As milícias eram chamadas autodefesas comunitárias e elas significavam exatamente isso. As pessoas enxergavam elas como autodefesas do bairro, uma polícia auxiliar. E eram muito bem vistas, benquistas. Isso mudou depois do sequestro da equipe do jornal O Dia, em 2007. Tem de fato essa diferença entre o justiceiro e o miliciano. Tem essa diferença porque o justiceiro está ali ainda fazendo isso de uma forma que ele acha que, bom, não é o melhor jeito do mundo, “mas precisei pegar esse atalho aqui para resolver esse problema”. Mas o miliciano já cruzou essa fronteira de achar que estava fazendo justiça. Ele realmente já partiu para o negócio, virou negócio.
Você é uma jornalista conhecida, combativa e com uma cara conhecida. Como foi fazer essa apuração?
O desafio de cobrir essa área é realmente ter acesso à informação. Qualquer que seja ela. É sempre muito difícil. Para conseguir fazer esse tipo de trabalho, tem que ter muita fonte. É um tema sensível, nem todo mundo quer falar sobre isso. Porque é arriscado para todo mundo. Para que uma pessoa te receba, uma outra pessoa precisa dar o aval. E eu tentei falar com a Polícia Civil inúmeras vezes. Eles me negaram absolutamente todas as informações e acessos. Eu pedi entrevista com delegados, eles me negaram. Eu pedi informações sobre inquéritos, sobre investigação, me negaram absolutamente tudo.
Ou seja, foi mais fácil falar com a ilegalidade do que com as polícias?
Exatamente. Eu peguei um inquérito e fui analisar as munições que foram usadas na operação. E, assim, era muito difícil para poder obter as informações, sabe? E quando eu solicitei essas informações para a Polícia Civil, o que eles fizeram? Eles simplesmente colocaram tudo em sigilo de cinco anos.
De quem as pessoas nas comunidades têm mais medo: do tráfico ou das milícias?
Isso pode variar. E vem mudando ao longo dos anos porque o traficante, geralmente, é uma pessoa que nasceu ali. As pessoas o conhecem. Nasceu, cresceu, é colega de escola, é colega do grupo da igreja. E existe esse certo respeito por ser uma pessoa criada ali, que a família está ali. Já a milícia é diferente porque ela coloniza áreas. Ela abre novos campos e não tem essa relação de ter sido um morador da área ou ser uma pessoa que tem uma família ali. A milícia é mais um negócio em expansão, porque ela vai para a comunidade para poder explorar serviços. É outro tipo de relação; é estritamente comercial. O do tráfico, o mercado é para fora. Os caras vendem droga para fora. E a milícia vem de fora para dentro e vai explorar todos os moradores o tempo todo. Então, essa relação é mais delicada, impõe mais medo.