Justiça sem diversidade é poder sem legitimidade: por uma ministra negra no STF
A disputa por uma vaga no Supremo Tribunal Federal sempre foi tratada como assunto interno da elite jurídica. A escolha do nome certo costuma se restringir a um círculo estreito de juristas, advogados influentes e servidores de carreira. Essa lógica, além de opaca, cria um Judiciário que fala para si mesmo. Por isso, a indicação de uma mulher negra para o STF não é um gesto identitário, mas um teste de legitimidade institucional, pois revela a capacidade do Estado de reconhecer que o poder jurídico só é estável quando reflete a sociedade que o sustenta.
O problema central não é a ausência de mulheres ou negros na corte, mas o que essa ausência produz, uma Justiça que decide sobre um país que não conhece. O sistema jurídico brasileiro opera, há décadas, dentro de um padrão social muito específico, a saber, masculino, branco e de classe média alta. As normas são as mesmas para todos, mas a leitura delas depende de quem as aplica. Por isso, a composição dos tribunais tem efeitos diretos sobre a interpretação das leis, a prioridade das pautas e o alcance das decisões. Quando a Justiça é homogênea, ela se torna previsível e, portanto, facilmente capturada.
A presença de uma ministra negra em uma corte superior rompe esse padrão porque desloca o centro da autoridade jurídica. Obriga a corte a lidar com experiências, visões e formas de argumentar que não cabem no molde tradicional. Esse deslocamento é desconfortável para quem sempre deteve o monopólio da interpretação do direito, e é exatamente por isso que ele é necessário. A legitimidade do Judiciário, em tempos de descrédito das instituições, depende de sua capacidade de dialogar com uma sociedade desigual e desconfiada. A homogeneidade é hoje uma ameaça à credibilidade da Justiça.
Os que rejeitam a ideia de uma ministra negra alegam que o critério deve ser “técnico”, como se a técnica fosse um atributo independente da trajetória social. Esse argumento é antigo e funcional, porque protege o privilégio sob a aparência de neutralidade. O fato é que o “mérito” sempre foi determinado por redes de acesso, por quem teve chance de publicar, ser lembrado, indicado e apadrinhado. A escolha de uma mulher negra para o maior posto jurídico do país não subverte o mérito, pelo contrário, redefine-o.
O Judiciário brasileiro é uma das poucas estruturas de poder que nunca passou por um processo real de democratização. O Executivo e o Legislativo são pressionados pelo voto, mas o Judiciário não. Sua legitimidade deriva da confiança pública, e essa confiança se esgota quando as decisões parecem vir de um grupo sem vínculo com a realidade social. É por isso que a composição da corte importa. É uma questão de governabilidade institucional. Um tribunal que ignora o país que julga se torna refém de si mesmo.
A nomeação de uma ministra negra ao STF seria, nesse sentido, um movimento estratégico de Estado, visando corrigir uma distorção estrutural que há muito tem comprometido o funcionamento da Justiça. Em um país onde a maioria das vítimas do sistema penal é negra e pobre, é insustentável que quase todas as cúpulas do Judiciário sejam formadas por homens brancos. O resultado é um abismo de percepção: de um lado, a retórica da imparcialidade, de outro, a experiência concreta de um direito seletivo.
O impacto de uma nomeação assim vai além do simbolismo. Internamente, força o STF a revisar suas dinâmicas de deliberação, a forma como se dá a hierarquia de vozes, o modo como são definidas as prioridades. Externamente, sinaliza que o Estado brasileiro entende que a pluralidade é parte da eficiência institucional, e não um adorno progressista. Cortes mais diversas tendem a produzir decisões mais fundamentadas, com maior capacidade de resposta social e menor distância entre o texto da lei e sua aplicação no caso concreto (isso inclusive já foi referenciado por estudos empíricos). A insistência em reproduzir o mesmo perfil de ministros gera uma falsa sensação de estabilidade. Na prática, o que se conserva é a desigualdade.
Fillipi Nascimento é cientista Social. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper
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