HANÓI – Dois mundos em cinco dias, mas com algo em comum. Na segunda parte de sua viagem à Ásia, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou a Hanói, capital do Vietnã, uma república socialista, fechada, mas que no front econômico se entregou ao capitalismo e tem experimentado resultados expressivos nos últimos anos – é, apesar da desigualdade social gritante, uma das economias que mais crescem no planeta. O governo brasileiro quer aproveitar a onda de prosperidade do país para vender o que for possível, de carne a aviões.
Assim como fez dias antes no Japão assumidamente capitalista, no Vietnã Lula também levou consigo a carteira de produtos brasileiros que gostaria que os vietnamitas passassem a comprar. Nas reuniões com os líderes dos quatro pilares do regime – o secretário-geral do Partido Comunista, o primeiro-ministro, o presidente da República e o presidente da Assembleia Nacional –, ele defendeu com mais ênfase a liberação do mercado local para a carne bovina do Brasil, que não entra no país desde 2017, e a possibilidade de compra de jatos regionais da Embraer por uma das principais companhias aéreas vietnamitas.
Em uma das reuniões, com o presidente Luong Cuong, Lula antecipou que a solução de ao menos uma dessas reivindicações já estava encaminhada. “A abertura para a carne bovina brasileira atrairá investimentos de frigoríficos do Brasil para fazer deste país uma plataforma de exportação para (todo) o sudeste asiático”, disse o presidente, sob o busto de Ho Chi Minh, herói maior dos vietnamitas.
Foi, na verdade, um “spoiler”. Pouco depois, o staff presidencial confirmou que o Vietnã voltará a importar carne do Brasil. Os passos seguintes já estavam até combinados: a gigante brasileira JBS, dos irmãos Joesley e Wesley Batista, já tem até um plano pronto para a retomada das importações. Como o presidente havia sinalizado, o grupo vai construir uma planta industrial no norte do Vietnã para processar a carne a ser vendida, também, para os demais países do sudeste asiático, um mercado com mais de 700 milhões de pessoas.
Para a outra demanda, a dos aviões, o Brasil sinaliza com uma contrapartida na tentativa de sensibilizar os vietnamitas: a Embraer promete construir no país uma base de manutenção de aeronaves e um centro de treinamento de pilotos.
No primeiro dia de visita, logo cedo Lula visitou o imponente e super vigiado mausoléu onde está o corpo embalsamado de Ho Chi Minh. Depois, nas reuniões com os quatro líderes do regime, protegidas por rígidas normas de segurança (na sede do Partido Comunista, por exemplo, não era possível nem entrar com telefone celular), o presidente repetiu que o Brasil e o Vietnã, que no ano passado assinaram um acordo de parceria estratégica, precisam avançar para uma relação comercial à altura do tamanho que têm. O Brasil vende para os vietnamitas algodão, milho e soja, principalmente. Hoje, o comércio bilateral soma US$ 7,8 bilhões. Não é pouca coisa. É mais do que o país exporta, por exemplo, para países como Reino Unido, Portugal e França. O governo, porém, quer mais.
“Nós temos muito orgulho da história do Vietnã, temos orgulho e conhecemos a luta do povo do Vietnã sabemos o que Vietnã sofreu e está construindo e, por isso, o Brasil quer ser um parceiro, para discutir todos os assuntos, parceiro estratégico de verdade, que não fique apenas no papel”, disse Lula, pincelando as vitórias do país nas cruentas guerras que garantiram a instituição da república socialista.
Sentindo-se à vontade pela, digamos, afinidade ideológica com os anfitriões, nos encontros o presidente voltou a fazer críticas indiretas a Donald Trump, dizendo que o planeta passa por um mau momento, com o crescimento do que vem chamando de “extrema direita negacionista” e posições que põem o multilateralismo em risco.
Em Tóquio, Lula já havia dito que países como o Brasil e o Japão precisam estar atentos à nova “Guerra Fria” entre Estados Unidos e China, o que poderia dividir o mundo, com o cuidado de não se alinhar a nenhum dos lados. Em Hanói, ele voltou ao tema. “Como expoentes da construção de uma ordem multipolar, a América Latina e o sudeste asiático devem evitar uma nova divisão do globo em zonas de influência. Ainda que de forma distinta, Vietnã e Brasil sofreram os efeitos da Guerra Fria e sabem que o melhor caminho é o não-alinhamento”, afirmou.
Nesse ponto, porém, o presidente brasileiro esbarrou em uma questão sensível. Sim, o Vietnã é um regime comunista fechado, onde as liberdades são relativas, mas quando se trata de interesses econômicos e da possibilidade de fazer negócios, a ideologia tem ficado em segundo plano. Como a China, o Vietnã é essencialmente pragmático nos negócios – inclusive com Donald Trump.
Trump anunciou que países que vendem para os Estados Unidos mais do que compram seriam sobretaxados. O Vietnã é o terceiro dessa lista dos que têm déficit comercial com os americanos, atrás apenas de China e México, mas até agora não há sinais de que será alvo do tarifaço.
Há algumas explicações para isso. Hanói tem emitido sinais de que deseja manter uma boa relação com Trump e seu governo. Em janeiro, o primeiro-ministro vietnamita, Pham Minh Chinh, chegou a dizer que, se fosse preciso, iria a Mar-a-Lago, o resort de Trump na Flórida, jogar golfe com ele durante um dia inteiro se isso fosse necessário para garantir os interesses comerciais do Vietnã.
É mais uma demonstração do que os especialistas, para definir a estratégia vietnamita na relação com os outros países, apelidaram de “diplomacia do bambu” – sempre flexível, para onde quer que aponte o vento.
Mais recentemente, o Vietnã se mostrou aberto a parcerias com a Starlink de Elon Musk, grande parceiro de Trump e homem forte do novo governo americano. Tem mais um elemento: conforme revelou a Reuters, o conglomerado de Donald Trump tem planos de investir bilhões de dólares em resorts e outros projetos imobiliários no Vietnã, um destino turístico global cada vez mais badalado. Ou seja: nos negócios, o regime comunista que ganhou a visita de Lula neste tour pela Ásia opera – e de forma agressiva – de acordo com os princípios mais básicos do capitalismo.
Abrir o mercado para a carne bovina brasileira, portanto, não chega a ser uma grande concessão – há, por óbvio, espaço para muito mais. Em Hanói, entre as ruas que revelam um país cada vez mais rico, mas com grande parte da população ainda na pobreza, e os suntuosos palácios de onde despacham os cabeças do regime, Lula está vendo bem de perto uma versão do comunismo bem diferente daquelas das velhas cartilhas.