O padre católico no Brasil trocou a camiseta de Che Guevara pelo colarinho clerical. Os sacerdotes progressistas dos anos 1970 e 1980 usavam barba, cabelos compridos, sandálias de couro e gostavam de exibir a imagem do líder revolucionário cubano. Esse perfil ficou, de certa forma, no passado. Em sua grande maioria, os padres brasileiros de hoje têm cabelos curtos, usam cruz na lapela, preferem a vestimenta padrão dos sacerdotes e vivem cercados de imagens de santos, como descreveu em um de seus livros o norte-americano Kenneth Serbin, professor de História da Universidade de San Diego e pesquisador de religião no Brasil.

A maior parte dos padres novos do país, formada a partir dos anos 1990, não se identifica com a Teologia da Libertação, a corrente religiosa católica que defende a opção preferencial pelos pobres e predominou nas igrejas daqui há pouco mais de quarenta anos.

A constatação está na pesquisa "O novo rosto do clero - Perfil dos padres novos no Brasil", coordenada em 2021 pelo padre Agenor Brighenti, professor de teologia da PUC do Paraná e doutor em Ciências Teológicas pela Universidade Católica de Louvain. Enquanto 49,5% dos padres brasileiros do passado disseram ver na Teologia da Libertação “uma dimensão sócio-transformadora do Evangelho”, apenas 16,4% dos padres novos concordaram com essa afirmação, de acordo com a pesquisa.

Atualmente, a maioria da Igreja Católica, na avaliação de religiosos como o dominicano Frei Betto, é moderada, e com inclinação para o conservadorismo. Mesmo na gestão do papa Francisco, considerado um progressista, a maioria dos bispos brasileiros nomeados por ele é formada por moderados ou conservadores. Apenas vinte podem ser considerados progressistas, aponta um levantamento do teólogo Manoel Godoy, da Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte. O papa nomeia novos bispos, mas não tem controle total sobre os indicados, pois geralmente eles são recomendados também pela Nunciatura Apostólica, uma espécie de embaixada que o Vaticano tem em cada país.

A Igreja Católica brasileira tem dois cardeais considerados progressistas: o arcebispo de Porto Alegre, dom Jaime Spengler, presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), e dom Leonardo Steiner, arcebispo de Manaus, que participarão do conclave que elegerá o próximo papa.

Guinada conservadora
A Igreja Católica no Brasil estava na linha de frente da chamada corrente progressista na América Latina, mas deu uma guinada conservadora a partir do final dos anos 1980, resultado de um movimento arquitetado por Roma. Uma das primeiras medidas do Vaticano para conter a Teologia da Libertação e afastar bispos e padres da política e de movimentos sociais ligados à esquerda foi o anúncio, em 1989, da divisão da Arquidiocese de São Paulo, considerada então a maior do mundo católico.

A Santa Sé tirou do controle do cardeal dom Paulo Evaristo Arns, então arcebispo de São Paulo, quatro de suas regiões episcopais (São Miguel Paulista, Santo Amaro, Campo Limpo e Osasco), que foram transformadas em novas dioceses e passaram a ter bispos conservadores nos seus comandos. As quatro regiões eram justamente as que tinham ligações mais fortes com a Pastoral Operária e movimentos sociais que reivindicavam moradia, transporte, saúde e educação e tinham por prática denunciar violações aos direitos humanos.

A partir dos anos 1990, os bispos mais identificados com posições à esquerda – vários eram conhecidos em todo o mundo, como dom Pedro Casaldáliga, de São Felix do Araguaia (MT), morto em 2020, e dom Tomás Balduíno, de Goiás Velho (GO), morto em 2014 –, foram substituídos por bispos conservadores ou moderados. Padres progressistas também foram transferidos de igrejas nas periferias, e seminários e escolas católicas passaram a ter novos diretores, seguindo as determinações da Santa Sé.

Teólogos ligados à Teologia da Libertação, como o frade franciscano Leonardo Boff, também tiveram textos questionados e proibidos pela Congregação para a Doutrina da Fé (ex-Santa Inquisição). No livro “Igreja, Carisma e Poder”, Boff criticou a relação da Igreja com o poder e foi punido, em 1985, com um ano de “silêncio obsequioso”. Na prática, não podia falar, ensinar ou desenvolver atividades teológicas.

A onda da Renovação Carismática
Por meio de um projeto chamado “Evangelização 2000”, que não tinha apoio oficial do Vaticano mas estava alinhado com a proposta de uma “nova evangelização” defendida pelo papa João Paulo II, líderes católicos europeus passaram a reforçar ações de grupos como a Renovação Carismática Católica, de tendência conservadora. Os carismáticos – a versão católica do pentecostalismo – incentivaram, entre outras ações, o surgimento dos chamados padres cantores, como o paulista Marcelo Rossi.

“Os papas João Paulo II e Bento XVI massacraram a Teologia da Libertação”, avalia o escritor Jorge Claudio Ribeiro, livre-docente em Ciências da Religião pela PUC-São Paulo. “A Igreja Católica na América Latina se opôs às ditaduras. E elas também acabaram, ou diminuíram. Então, a Teologia da Libertação também perdeu relevância”, afirma.

“Os bispos progressistas morreram. O último foi dom Angélico Sândalo Bernardino (ex-bispo de São Miguel Paulista e arcebispo emérito de Blumenau), que morreu no último dia 15. Há um ou outro progressista, mas sem aquele profetismo e a projeção que os outros tinham. Dos cardeais, hoje, só dom Leonardo Steiner, de Manaus, que a gente pode considerar realmente progressista”, afirma Frei Betto. “É uma igreja em cima do muro. Uma igreja da safra de João Paulo II e Bento XVI. Foram 34 anos de pontificados conservadores dos dois. Essa geração de padres e bispos aí é tudo dessa safra.”

Ainda segundo Frei Betto, os dois papas anteriores “puseram um pé no freio nas comunidades de base, deram um chega pra lá na Teologia da Libertação, sem condená-la, mas censurando-a, e com isso criaram e reforçaram muito o clericalismo”. De acordo com o religioso, o papa Francisco vivia tentando combater esse clericalismo e, por isso, nos últimos doze anos, “tivemos uma igreja que era um corpo conservador com a cabeça progressista”.