Ao discursar, nesta terça-feira, 23, na abertura da 80ª Assembleia Geral da ONU, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez duras críticas à incapacidade de respostas dos organismos internacionais diante dos conflitos atuais, defendeu a soberania dos países e respondeu à ofensiva dos Estados Unidos contra o Brasil. Diante de líderes de todo o mundo, ele abordou os principais pontos da política externa brasileira.

“Atentados à soberania, sanções arbitrárias e intervenções unilaterais estão se tornando a regra”, afirmou Lula. “Existe um evidente paralelo entre a crise do multilateralismo e o enfraquecimento da democracia. O autoritarismo se fortalece quando nos omitimos frente a arbitrariedades”, continuou o presidente.

Lula citou o enfraquecimento das relações multilaterais, desigualdades sociais, combate à fome no mundo, regulação das redes sociais, sanções contra a Venezuela, Cuba e Haiti, guerras na Ucrânia e Gaza, Estado palestino, questão climática e COP30. 

Em suas primeiras palavras, o petista ser referiu à “injustiça” das sanções emitidas pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump contra o Brasil e relacionou as retaliações à tentativa de golpe na transição de governo e condenado o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ).

No discurso, Lula adotou um tom de rivalidade com as ideias de Trump, que discursou em seguida. Os dois se encontraram nos bastidores da reunião e se cumprimentaram. Ao falar logo depois, o presidente americano tratou esse fato de forma pouco formal e afirmou que os dois marcaram um encontro para a próxima semana. Disse também que o petista é um “homem muito legal” (“very nice man”).

Confira os principais pontos do discurso de Lula: 

Sanções dos EUA contra o Brasil
Lula condenou fortemente a contaminação ideológica praticada pelos Estados Unidos contra o Brasil e apontou que a motivação está na articulação de forças de extrema-direita no mundo. Foi um recado direto a Trump e a Bolsonaro, em respostas às sanções aplicadas ao Brasil, tanto na relação comercial, com o tarifaço, quanto nas punições destinadas a autoridades, como o ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal).

Em todo o mundo, forças antidemocráticas tentam subjugar as instituições e sufocar as liberdades. Cultuam a violência, exaltam a ignorância, atuam como milícias físicas e digitais, e cerceiam a imprensa. Mesmo sob ataque sem precedentes, o Brasil optou por resistir e defender sua democracia, reconquistada há quarenta anos pelo seu povo, depois de duas décadas de governos ditatoriais.

Não há justificativa para as medidas unilaterais e arbitrárias contra nossas instituições e nossa economia. A agressão contra a independência do Poder Judiciário é inaceitável. Essa ingerência em assuntos internos conta com o auxílio de uma extrema direita subserviente e saudosa de antigas hegemonias. Falsos patriotas arquitetam e promovem publicamente ações contra o Brasil. Não há pacificação com impunidade.

A ONU tem hoje quase quatro vezes mais membros do que os 51 que estiveram na sua fundação. Nossa missão histórica é a de torná-la novamente portadora de esperança e promotora da igualdade, da paz, do desenvolvimento sustentável, da diversidade e da tolerância.

Enfraquecimento das relações multilaterais
O presidente brasileiro também indicou a necessidade de reforma na ONU que, em sua visão, precisa recuperar a capacidade de ser relevante para solucionar problemas.

Este deveria ser um momento de celebração das Nações Unidas. Criada no fim da Guerra, a ONU simboliza a expressão mais elevada da aspiração pela paz e pela prosperidade. Hoje, contudo, os ideais que inspiraram seus fundadores em São Francisco estão ameaçados, como nunca estiveram em toda a sua história. O multilateralismo está diante de nova encruzilhada.

A autoridade desta Organização está em xeque. Assistimos à consolidação de uma desordem internacional marcada por seguidas concessões à política do poder. Atentados à soberania, sanções arbitrárias e intervenções unilaterais estão se tornando a regra. Existe um evidente paralelo entre a crise do multilateralismo e o enfraquecimento da democracia. O autoritarismo se fortalece quando nos omitimos frente a arbitrariedades. Quando a sociedade internacional vacila na defesa da paz, da soberania e do direito, as consequências são trágicas.

O século 21 será cada vez mais multipolar. Para se manter pacífico, não pode deixar de ser multilateral. O Brasil confere crescente importância à União Europeia, à União Africana, à ASEAN, à CELAC, aos BRICS e ao G20. A voz do Sul Global deve ser ouvida.

Condenação de Bolsonaro
Lula indicou o processo que condenou Bolsonaro como uma resposta a inciativas autocratas. Indiretamente, o presidente brasileiros apontou que, diferente dos Estados Unidos, que não puniram a invasão do Capitólio e levaram Trump novamente ao poder, o Brasil puniu o ex-presidente por tentar um golpe de Estado.

Há poucos dias, e pela primeira vez em 525 anos de nossa história, um ex-chefe de Estado foi condenado por atentar contra o Estado Democrático de Direito. Foi investigado, indiciado, julgado e responsabilizado pelos seus atos em um processo minucioso. Teve amplo direito de defesa, prerrogativa que as ditaduras negam às suas vítimas.

Diante dos olhos do mundo, o Brasil deu um recado a todos os candidatos a autocratas e àqueles que os apoiam: nossa democracia e nossa soberania são inegociáveis. Seguiremos como nação independente e como povo livre de qualquer tipo de tutela.

Desigualdades e combate à fome
Lula abordou seu tema prioritário em discursos internacionais, o combate à fome e à desigualdade no mundo. Ele condenou a violência de gênero e comparou o impacto da pobreza ao extremismo sobre as populações. Em mais um recado à comunidade internacional, Lula indicou que os países deveriam gastar mais com o enfrentamento da miséria do que com guerras.

Democracias sólidas vão além do ritual eleitoral. Seu vigor pressupõe a redução das desigualdades e a garantia dos direitos mais elementares: a alimentação, a segurança, o trabalho, a moradia, a educação e a saúde. A democracia falha quando as mulheres ganham menos que os homens ou morrem pelas mãos de parceiros e familiares. Ela perde quando fecha suas portas e culpa migrantes pelas mazelas do mundo. A pobreza é tão inimiga da democracia quanto o extremismo.

Foi com orgulho que recebemos da FAO a confirmação de que o Brasil voltou a sair do Mapa da Fome neste ano de 2025. Mas no mundo, ainda há 670 milhões de pessoas famintas. Cerca de 2,3 bilhões enfrentam insegurança alimentar.

A única guerra de que todos podem sair vencedores é a que travamos contra a fome e a pobreza. Esse é o objetivo da Aliança Global que lançamos no G20, que já conta com o apoio de 103 países. A comunidade internacional precisar rever as suas prioridades: Reduzir os gastos com guerras e aumentar a ajuda ao desenvolvimento; aliviar o serviço da dívida externa dos países mais pobres, sobretudo os africanos; e definir padrões mínimos de tributação global, para que os super-ricos paguem mais impostos que os trabalhadores.

Regulação das redes sociais
Lula defendeu a regulação do ambiente digital em contraponto à defesa das chamadas big techs enfatizada pelo governo de Donald Trump e indicou a lei de proteção às crianças nas redes recentemente aprovada pelo Congresso e sancionada.

A democracia também se mede pela capacidade de proteger as famílias e a infância. As plataformas digitais trazem possibilidades de nos aproximar como jamais havíamos imaginado. Mas têm sido usadas para semear intolerância, misoginia, xenofobia e desinformação. A internet não pode ser uma “terra sem lei”. Cabe ao poder público proteger os mais vulneráveis. Regular não é restringir a liberdade de expressão. É garantir que o que já é ilegal no mundo real seja tratado assim no ambiente virtual. Ataques à regulação servem para encobrir interesses escusos e dar guarida a crimes, como fraudes, tráfico de pessoas, pedofilia e investidas contra a democracia.

O Parlamento brasileiro corretamente apressou-se em abordar esse problema. Com orgulho, promulguei na última semana uma das leis mais avançadas do mundo para a proteção de crianças e adolescentes na esfera digital. Também enviamos ao Congresso Nacional projetos de lei para fomentar a concorrência nos mercados digitais e para incentivar a instalação de datacenters sustentáveis. Para mitigar os riscos da inteligência artificial, apostamos na construção de uma governança multilateral em linha com o Pacto Digital Global aprovado neste plenário no ano passado.

América Latina e sanções contra Venezuela, Cuba e Haiti
O presidente brasileiro também apontou as investidas dos Estados Unidos no Mar do Caribe e as alegações de Trump de combate ao tráfico de drogas para posicionar navios próximos à Venezuela. Lula citou ainda, como de costume, as sanções já aplicadas contra Cuba e a exploração no Haiti. 

Na América Latina e Caribe, vivemos um momento de crescente polarização e instabilidade. Manter a região como zona de paz é nossa prioridade. Somos um continente livre de armas de destruição em massa, sem conflitos étnicos ou religiosos. É preocupante a equiparação entre a criminalidade e o terrorismo. A forma mais eficaz de combater o tráfico de drogas é a cooperação para reprimir a lavagem de dinheiro e limitar o comércio de armas. Usar força letal em situações que não constituem conflitos armados equivale a executar pessoas sem julgamento.

Outras partes do planeta já testemunharam intervenções que causaram danos maiores do que se pretendia evitar, com graves consequências humanitárias. A via do diálogo não deve estar fechada na Venezuela. O Haiti tem direito a um futuro livre de violência. E é inadmissível que Cuba seja listada como país que patrocina o terrorismo.

Guerra da Ucrânia
Ao falar sobre a Guerra da Ucrânia, o presidente brasileiro disse que é necessária uma ação mais “realista” para uma saída negociada. Nesse ponto, em vez de criticar Trump, que tentou um acordo no encontro ocorrido no Alaska, Lula disse que o esforço foi válido e colocou o Brasil e outros aliados com disposição para contribuir. 

No conflito na Ucrânia, todos já sabemos que não haverá solução militar. O recente encontro no Alaska despertou a esperança de uma saída negociada. É preciso pavimentar caminhos para uma solução realista. Isso implica levar em conta as legítimas preocupações de segurança de todas as partes. A Iniciativa Africana e o Grupo de Amigos da Paz, criado por China e Brasil, podem contribuir para promover o diálogo.

Guerra em Gaza
Lula falou também sobre o conflito em Gaza, tomando o cuidado de condenar o Hamas pelo ataque inicial. No entanto, enfatizou a resposta desproporcional de Israel, indicando que não há como defender o “genocídio” e a “fome usada como arma de guerra” por Israel.

Nenhuma situação é mais emblemática do uso desproporcional e ilegal da força do que a da Palestina. Os atentados terroristas perpetrados pelo Hamas são indefensáveis sob qualquer ângulo. Mas nada, absolutamente nada, justifica o genocídio em curso em Gaza.

Ali, sob toneladas de escombros, estão enterradas dezenas de milhares de mulheres e crianças inocentes. Ali também estão sepultados o Direito Internacional Humanitário e o mito da superioridade ética do Ocidente. Esse massacre não aconteceria sem a cumplicidade dos que poderiam evitá-lo.

Em Gaza a fome é usada como arma de guerra e o deslocamento forçado de populações é praticado impunemente. Expresso minha admiração aos judeus que, dentro e fora de Israel, se opõem a essa punição coletiva.

Estado palestino
Lula cobrou da ONU que o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, tenha sido impedido pelos Estados Unidos de participar da reunião. Abbas não teve seu visto concedido para viajar a Nova York. 

O povo palestino corre o risco de desaparecer. Só sobreviverá com um Estado independente e integrado à comunidade internacional. Esta é a solução defendida por mais de 150 membros da ONU, reafirmada ontem, aqui neste mesmo plenário, mas obstruída por um único veto. É lamentável que o presidente Mahmoud Abbas tenha sido impedido pelo país anfitrião de ocupar a bancada da Palestina nesse momento histórico.

O alastramento desse conflito para o Líbano, a Síria, o Irã e o Catar fomenta escalada armamentista sem precedentes.

Questão climática e COP30
O presidente brasileiro ainda falou sobre a Conferencia das Mudanças Climáticas que ocorrerá em Belém, indicando que ela será a “COP da verdade”, ou seja, o momento em que líderes mundial terão que provar o compromisso com a redução de emissões.

Bombas e armas nucleares não vão nos proteger da crise climática. O ano de 2024 foi o mais quente já registrado. A COP30, em Belém, será a COP da verdade. Será o momento de os líderes mundiais provarem a seriedade de seu compromisso com o planeta. Sem ter o quadro completo das Contribuições Nacionalmente Determinadas (as NDCs), caminharemos de olhos vendados para o abismo.

O Brasil se comprometeu a reduzir entre 59 e 67% suas emissões, abrangendo todos os gases de efeito estufa e todos os setores da economia. Nações em desenvolvimento enfrentam a mudança do clima ao mesmo tempo em que lutam contra outros desafios. Enquanto isso, países ricos usufruem de padrão de vida obtido às custas de duzentos anos de emissões. Exigir maior ambição e maior acesso a recursos e tecnologias não é uma questão de caridade, mas de justiça.

A corrida por minerais críticos, essenciais para a transição energética, não pode reproduzir a lógica predatória que marcou os últimos séculos. Em Belém, o mundo vai conhecer a realidade da Amazônia. O Brasil já reduziu pela metade o desmatamento na região nos dois últimos anos. Erradicá-lo requer garantir condições dignas de vida para seus milhões de habitantes.

Fomentar o desenvolvimento sustentável é o objetivo do Fundo Florestas Tropicais para Sempre, que o Brasil pretende lançar para remunerar os países que mantêm suas florestas em pé. É chegado o momento de passar da fase de negociação para a etapa de implementação.

Novo conselho climático
Lula sugeriu elevar o tema das mudanças climáticas, indicando a criação de um conselho específico para cuidar desse assunto.

O mundo deve muito ao regime criado pela Convenção do Clima. Mas é necessário trazer o combate à mudança do clima para o coração da ONU, para que ela tenha a atenção que merece. Um Conselho vinculado à Assembleia Geral com força e legitimidade para monitorar compromissos dará coerência à ação climática.

Trata-se de um passo fundamental na direção de uma reforma mais abrangente da Organização, que contemple também um Conselho de Segurança ampliado nas duas categorias de membros.

Reforma da OMC (Organização Mundial do Comércio)
Como esperado, o presidente brasileiro voltou a falar sobre a necessidade de reforma da OMC.

Poucas áreas retrocederam tanto como o sistema multilateral de comércio. Medidas unilaterais transformam em letra morta princípios basilares como a cláusula de Nação Mais Favorecida.

Desorganizam cadeias de valor e lançam a economia mundial em uma espiral perniciosa de preços altos e estagnação. É urgente refundar a OMC em bases modernas e flexíveis.

Pepe Mujica, Papa Francisco e democracia
Lula lembrou a luta de dois nomes pela democracia e pela redução da desigualdade no mundo: o ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica, e o Papa Francisco, que morreram neste ano. As duas referências serviram para sintetizar o recado que o brasileiro passou na ONU contra o autoritarismo e a opressão.

Este ano, o mundo perdeu duas personalidades excepcionais: o ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica, e o Papa Francisco. Ambos encarnaram como ninguém os melhores valores humanistas. Suas vidas se entrelaçaram com as oito décadas de existência da ONU. Se ainda estivessem entre nós, provavelmente usariam esta tribuna para lembrar: que o autoritarismo, a degradação ambiental e a desigualdade não são inexoráveis; que os únicos derrotados são os que cruzam os braços, resignados; que podemos vencer os falsos profetas e oligarcas que exploram o medo e monetizam o ódio; e que o amanhã é feito de escolhas diárias e é preciso coragem de agir para transformá-lo.

No futuro que o Brasil vislumbra não há espaço para a reedição de rivalidades ideológicas ou esferas de influência. A confrontação não é inevitável. Precisamos de lideranças com clareza de visão, que entendam que a ordem internacional não é um ‘jogo de soma zero’.