Hugo Motta, à frente da Mesa da Câmara dos Deputados, levou ao Supremo Tribunal Federal uma ação na qual reivindica, para a Câmara dos Deputados e para o Senado Federal, o poder de suspender quaisquer processos criminais contra parlamentares, independentemente do momento em que os crimes foram cometidos.

A ação tem por contexto a decisão unânime da 1ª Turma do STF que tornou réus Ramagem, Bolsonaro, Braga Netto, Augusto Heleno, Anderson Torres, Almir Garnier, Paulo Sérgio Nogueira e Mauro Cid, pelos crimes de organização criminosa, tentativa de golpe e de abolição violenta do estado democrático de direito, além dos crimes de dano qualificado e deterioração de patrimônio público.

Dentre esses réus, Ramagem exerce mandato de deputado federal (PL-RJ). Os deputados e Hugo Motta, ao invés de abrirem procedimento de quebra de decoro do parlamentar, aprovaram resolução para suspender o curso da ação penal.

A 1ª Turma do STF, ao avaliar a resolução da Câmara, suspendeu a ação penal no que se refere aos crimes de dano qualificado e deterioração de patrimônio público, ocorridos em 8 de janeiro de 2023, mantendo a ação penal em curso quanto aos demais crimes, cuja prática remonta a meados de 2021. Ramagem foi diplomado em dezembro de 2022, uma semana antes de um bolsonarista tentar explodir o aeroporto de Brasília.

A Constituição, de fato, garante à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal a possibilidade de “recebida a denúncia contra o Senador ou Deputado, por crime ocorrido após a diplomação, o Supremo Tribunal Federal dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação” (artigo 53, §2º). Mas, como o próprio texto indica, faz isso apenas para crimes ocorridos após a diplomação.

A ideia por trás dessa disposição é impedir perseguição a parlamentares. Mas não é de hoje que os parlamentares transformam prerrogativas republicanas em privilégios desavergonhados. As imunidades parlamentares, criadas com o propósito de preservar o mandato de interferências indevidas, têm sido interpretadas, pelos parlamentes, como escudos para práticas criminosas, de Ramagem e muitos outros.

O grau de deterioração moral da Câmara é tamanho que Chiquinho Brazão, acusado de ser um dos mandantes do assassinato de Marielle Franco, permaneceu no cargo por um ano enquanto estava preso preventivamente na Penitenciária Federal de Campo Grande e só perdeu o mandato por excesso de faltas.

O pior é que nenhum desses fatos parece nos surpreender. São tantos os desmandos que parece que nos acostumamos a esse padrão de representação política que é, em verdade, inaceitável. Não é mera disputa de poder, nem política; é degradação.

No caso de Ramagem, a Câmara quer para si o poder ilimitado para blindar parlamentares acusados da prática de crime, qualquer um, a qualquer tempo. Mas não se trata apenas de fisiologismo.

A Câmara dos Deputados segue assanhada com a ideia de promover anistia às lideranças golpistas. Imaginou que, com a suspensão do processo contra Ramagem, os demais réus se aproveitariam da decisão, especialmente Bolsonaro que, não obstante ter feito um governo horroroso, espalhado a pandemia e o extremismo e tentado um golpe, continua a ser tratado como um ativo por parlamentares e governadores de extrema direita. É fisiologismo com populismo, alimentando o golpismo.

Eloísa Machado é coordenadora do projeto Supremo em Pauta, da Fundação Getúlio Vargas (FGV)