“Não há perdão para quem atenta contra o regime democrático.” Celso de Mello aposentou a toga, mas não a verve. “Conceder anistia a quem perverte a democracia e subverte o Estado de Direito” é uma segunda afronta à “soberana autoridade da Constituição”, sentencia ainda o ex-presidente do STF (Supremo Tribunal Federal). A poucos dias de completar 80 anos de idade, o ministro aposentado diminuiu aparições públicas desde que deixou a corte, há cinco anos, mas segue atento ao que se passa em Brasília. Em entrevista exclusiva ao PlatôBR, ele deu seu veredicto pessoal em dois temas correlatos que vão dominar a semana: o fim do julgamento de Jair Bolsonaro e a proposta de anistia em discussão no Congresso.

Paulista com raízes na pequena Tatuí (SP), ex-promotor de Justiça e ministro da Suprema Corte por 31 anos, ele ganhou o apelido de “senhor Constituição”, uma deferência à sua história no tribunal. Foi nomeado em 1989, por José Sarney, um ano após a promulgação da Carta. Deixou a toga em 2020, ano no qual fez alertas sobre os riscos do avanço de ideais radicalizadas no Brasil. Entre os casos que tinha em seu gabinete pouco antes da despedida, um deles era exatamente um inquérito contra Bolsonaro, então presidente da República, para apurar interferência na Polícia Federal e no Ministério da Justiça.

Mesmo longe, Celso de Mello segue reverenciado pelos antigos pares, que com frequência se referem a ele como “nosso sempre decano”, termo que define o mais antigo dos onze ministros. Na entrevista ao PlatôBR, por escrito, o ministro aposentado afirmou que a proposta de anistia em discussão no Congresso é inconstitucional e representa um segundo golpe, por interferir em outro poder. Ele também defendeu Alexandre de Moraes e o processo que corre na Primeira Turma contra Jair Bolsonaro e os demais acusados.

Eis a íntegra.

Qual a dimensão histórica do julgamento de Jair Bolsonaro no STF pela tentativa de golpe?
É sempre importante relembrar que não há perdão para quem atenta contra o regime democrático. Ações criminosas contra o Estado democrático de Direito têm consequências extremamente graves que se projetam contra quem incide em comportamentos sediciosos, vulneradores da ordem constitucional, atingindo-os em sua liberdade e patrimônio. Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. É o que prevê o artigo 29 do Código Penal brasileiro. Japona, farda ou trajes civis, qualquer que seja o gênero, cis ou trans, idade, a partir de 18 anos de idade, confissão religiosa, posição social ou financeira ou condição político-funcional ou hierárquica, não conferem imunidade penal a quem, atrevidamente, transgredir os fundamentos da democracia constitucional.

O papel do Supremo tem sido cumprido?
A Corte Suprema do Brasil não serve a governos, a pessoas ou a grupos ideológicos, nem se curva à onipotência do poder ou aos desejos daqueles que o exercem. O Supremo Tribunal Federal, expressão legítima da soberania nacional, não é vassalo de potestades estrangeiras nem instrumento servil de pretensões contestáveis, especialmente quando fundadas em pressões, ou em sutis ameaças, conflitantes com o espírito democrático que rege o Estado de Direito em nosso país. O STF, longe de curvar-se aos desígnios do poder político, econômico ou corporativo, jamais será infiel aos seus graves compromissos instituídos pela Lei Fundamental da República, pois tem a percepção superior de sua irrenunciável missão de velar pela supremacia da ordem constitucional, de defender a preservação do regime democrático e de proteger a intangibilidade dos valores inerentes à soberania do Estado brasileiro.

Como o senhor analisa a resposta da corte e dos ministros aos ataques?
A reação do STF, em regular procedimento penal, após formal provocação tanto da Polícia Federal quanto do procurador-geral da República, foi bastante e necessária para revelar, quanto aos criminosos invasores da sede dos Três Poderes, o elevado grau de insanidade e de gritante aversão à ordem social com que uma multidão descontrolada e cheia de raiva e fúria selvagem manifestou, de modo violento e ilegítimo, sua vontade totalitária e o seu menosprezo indigno ao regime democrático e ao estatuto das liberdades constitucionais. O comportamento da horda invasora constitui a expressão perversa do gravíssimo retrocesso institucional com que manifestantes radicais pretendiam perverter, deformar e suprimir a ideia ética e politicamente superior de democracia.

Os marginais da República, ao organizarem e concretizarem atos destinados a promover golpe de Estado, valendo-se de diversos meios, como a disseminação de “fake news”, a criminosa operação “Punhal Verde e Amarelo” e a invasão das instalações do STF, do Congresso e da Presidência da República, desonraram a majestade da Constituição e profanaram a sacralidade do Estado democrático de Direito. Revelaram, ainda, em seu comportamento criminoso, sua verdadeira face: a de delinquentes e de pessoas retrógradas e reacionárias, que só buscam o retrocesso institucional, que prestam, em gestos de indigna submissão, reverência vergonhosa a todos os tipos de fundamentalismo e de negacionismo que cultivam cegamente, um ódio irracional, além de profundo grau de intolerância, visando servir a um projeto sórdido de poder autoritário, visceralmente lesivo ao princípio dominante nas sociedades civilizadas, o princípio intocável da Democracia. São marginais da ética do poder democrático e do Direito, capazes de toda sorte de vilanias e das mais graves transgressões criminosas da ordem jurídica. Justa, necessária e legítima, portanto, a repressão do Estado contra aqueles que tentaram transgredir, criminosamente, a integridade do regime democrático.

Como vê a proposta de anistia a condenados em debate no Congresso?
Anistia em favor de golpistas constitui um ato de profanação ao Estado democrático de Direito. O projeto de lei articulado pela oposição bolsonarista, destinado a conceder anistia aos golpistas que dessacralizaram os símbolos da República e do regime democrático, representa, em sua essência, um novo, inaceitável e ultrajante vilipêndio contra o Estado de Direito e a supremacia da ordem constitucional. Entendo que tal pretensão encontra obstáculo na própria Constituição. Conceder anistia a quem perverte a democracia e subverte o Estado de Direito traduz ato que afronta e dessacraliza, uma vez mais, a soberana autoridade da Constituição da República.

O Congresso Nacional não pode exercer seu poder de legislar, em matéria de anistia, (1) naquelas hipóteses pré-excluídas pela própria Constituição do âmbito normativo desse ato de clemência soberana do Estado (tortura, racismo, tráfico de drogas, terrorismo, crimes hediondos e delitos a estes equiparados), (2) nos casos em que o Legislativo incidir em desvio de finalidade, distorcendo ou subvertendo a finalidade dessa modalidade do poder de graça, como ocorrerá se a concessão de anistia objetivar atribuir ao Parlamento a condição anômala, e inadmissível, de órgão revisor das decisões do STF, como revela a intenção motivadora do projeto de lei perante a Câmara dos Deputados, (3) em situação que caracterize ofensa ao princípio da separação de poderes e 4) se a medida tiver por finalidade beneficiar qualquer pessoa que haja ofendido ou desrespeitado os cânones inerentes à democracia constitucional, valor político amparado por cláusula pétrea implícita, como já entendeu o STF em alguns precedentes, como a ADPF 964/DF, de que foi relatora a ministra Rosa Weber!

O senhor escreveu recentemente artigos sobre a anistia e a posição do STF sobre o tema. Bolsonaro pode ser beneficiado?
O Supremo firmou precedente de que o indulto, anistia e a graça em sentido estrito estão sujeitos ao controle jurisdicional pleno do STF, que tem o “monopólio da última palavra” em matéria constitucional. O Congresso não pode exercer tal prerrogativa institucional com desvio de finalidade. A anistia não pode beneficiar quem houver atentado contra o Estado Democrático de Direito. O projeto de lei afronta a Constituição nesse ponto. Quem se envolveu na organização, na coordenação, no planejamento, no financiamento e na execução dos atos criminosos não são dignos nem passíveis de merecer o benefício da clemência do Estado. A proposta transgride a Constituição também ao converter o Congresso em anômalo órgão revisional, ou instância de superposição, das decisões do STF, contra o princípio da separação de poderes. Ela ofende postulados constitucionais protegidos por cláusulas pétreas.

A entrada em cena de Donald Trump com sanções em defesa do principal réu, o ex-presidente Jair Bolsonaro, o surpreendeu?
As relações diplomáticas entre o Brasil e os Estados Unidos sempre tiveram fases de intenso alinhamento político-diplomático, alguns momentos de tensão, mas de convívio amistoso. Não é, porém, o que se verifica neste momento, no Brasil, por efeito de uma política externa controversa e atípica do governo Trump, caracterizada por especial ênfase no isolacionismo, no nacionalismo econômico, em negociações bilaterais e no personalismo egocêntrico e autoritário, como já escrevi. A ação do governo Trump contra o STF, vale dizer, contra o Brasil, não representa simples gesto diplomático, mas traduz afronta direta, irresponsável e inaceitável à soberania do nosso país e de suas instituições. A chamada revogação dos vistos dos ministros do Supremo Tribunal Federal, praticada pelo governo estrangeiro sob o falso pretexto de perseguição e censura, constitui ato de arbitrariedade desmedida, impregnado de um espírito de arrogância imperial, agora agravado pela absurda aplicação da Lei Magnitsky ao ministro Alexandre de Moraes, um magistrado íntegro, exemplar e probo. Trata-se de comportamento que não apenas atinge pessoas específicas, mas que, simbolicamente, busca deslegitimar o próprio Supremo Tribunal Federal, que é a “sentinela das liberdades” no Brasil, no dizer memorável de Aliomar Baleeiro. Esse ato, mais do que uma ofensa pessoal aos ministros do STF, constitui uma agressão institucional ao Estado brasileiro e, por consequência, ao próprio povo de nosso país. É um insulto que fere a noção mesma de soberania nacional, porque significa que uma potência estrangeira, por meio de decisão arbitrária, pretende constranger e agredir um dos poderes da República, a Corte Suprema que encarna a guarda da Constituição.

Depois dos processos do 8 de Janeiro, os ataques ao Judiciário brasileiro devem ser superados?
É preciso lembrar: nenhum Estado democrático pode tolerar que seus juízes sejam atacados em razão do exercício de suas funções, ainda mais quando isso ocorre sob justificativas mendazes e manipuladas, como nesse episódio. Ao agir dessa forma, Trump demonstrou mais uma vez a sua postura de desprezo não apenas pelo direito internacional, mas também pelos princípios de convivência civilizada que estruturam as relações entre Estados soberanos. A conduta é reveladora de uma mentalidade marcada pelo autoritarismo e pela prepotência, que não reconhece limites éticos ou jurídicos quando se trata de impor, abusivamente, a sua vontade. Não é apenas uma afronta ao Brasil, mas uma ofensa ao ordenamento que deve reger a comunidade internacional, fundado, segundo a Carta das Nações Unidas, a ONU, na igualdade soberana dos Estados, tese que foi brilhantemente exposta por Ruy Barbosa, em 1907, na Segunda Conferência Internacional da Paz, em Haia, na qual ainda sustentou, como fundamento legitimador da convivência harmoniosa entre as Nações, o repúdio à classificação dos Estados com base em critérios militares ou econômicos. É indispensável que o gesto do governo Trump seja lido não apenas como um ato hostil, mas como um perigoso precedente no contexto das relações internacionais. É que, se admitirmos que um governo estrangeiro possa retaliar juízes por decisões constitucionais, estaremos enfraquecendo a ideia mesma de independência judicial, que é um dos pilares do Estado Democrático de Direito.

Que Trump saiba, e seja publicamente advertido, que a Corte Suprema do Brasil, atenta à sua alta responsabilidade institucional, não transigirá nem renunciará ao desempenho isento, impessoal e independente da jurisdição, fazendo sempre prevalecer os valores fundantes da ordem democrática, além de prestar incondicional reverência ao primado da Constituição, ao império das leis, o rule of law, e à superioridade ético-jurídica das ideias que informam e animam o espírito da República. Ninguém desconhece, a não ser pessoas e governantes que agem motivados por pulsões autocráticas, que, sem juízes independentes, jamais haverá cidadãos livres. Na realidade, e como algumas vezes enfatizei em julgamentos no Supremo Tribunal Federal, inexiste na história das sociedades políticas qualquer registro de um povo que, despojado de um Judiciário independente, tenha conseguido preservar os seus direitos e conservar a sua própria liberdade. Sugiro a Trump, que sequer possui a condição honrosa de estadista, ler The Federalist Papers, no qual Alexander Hamilton defendeu a importância e a essencialidade de um judiciário independente e livre da ilegítima interferência dos poderes eleitos.

O senhor ainda tem raízes em Tatuí, no interior paulista? E diria que foi eleito “inimigo do bolsonarismo”, depois que assumiu relatoria do inquérito contra o presidente em 2020?
Tatuí, minha terra natal, mais do que um lugar, representa, para mim, verdadeiro estado de espírito. Minhas ligações com Tatuí são indissoluvelmente pessoais e afetivas. Não tenho inimigos. Tenho apenas a lealdade incondicional à Constituição, à República e à democracia. Em verdade, não sou adversário senão da intolerância, do autoritarismo e da erosão dos valores democráticos. O que sempre procurei fazer, com a serenidade que a Constituição exige de todos nós, foi afirmar princípios, não alimentar animosidades pessoais. A democracia não se constrói sobre a lógica da inimizade, mas sobre a força dos argumentos e o respeito à divergência. Se, em algum momento, minhas palavras foram críticas ao bolsonarismo, isso se deu por estrita fidelidade à Constituição da República e ao Estado democrático de Direito. Inimigos, em uma ordem democrática, não existem. Existem apenas diferentes concepções de mundo.