Abaixo, a íntegra do discurso do presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Luís Roberto Barroso, na sessão de abertura do segundo semestre.
Prezados ministros, leio um breve pronunciamento para o Tribunal, que intitulei O Supremo Tribunal Federal e a defesa da institucionalidade.
Um pouco de história política do Brasil. Em novembro de 1891, Deodoro da Fonseca, primeiro presidente da República, renunciou após uma tentativa fracassada de golpe de Estado. Foi substituído pelo vice-presidente Floriano Peixoto, que, violando a Constituição, deixou de convocar eleições e permaneceu ilegitimamente no poder até 1894. As tentativas de quebra de institucionalidade nos acompanham desde os primeiros passos da República Brasileira. Em 1892, diante de um habeas corpus impetrado perante o Supremo Tribunal Federal em favor de generais que haviam se rebelado contra decisões suas, o mesmo Floriano Peixoto teria pronunciado uma frase que ficou célebre: “Se o Supremo Tribunal Federal conceder o habeas corpus, não sei quem amanhã dará habeas corpus aos ministros.” O Supremo terminou por não conhecer do habeas corpus, considerando se tratar de questão essencialmente política.
Esses episódios que eu acabo de descrever revelam três facetas da história constitucional e republicana brasileira: presidentes autoritários, militares envolvidos em política e ameaças ao Supremo Tribunal Federal. Do início da República até o final do regime militar, a história do Brasil foi a história de golpes, contragolpes, intervenções militares, rupturas ou tentativas de ruptura da legalidade constitucional.
Não é difícil demonstrar o ponto. Fazendo um corte cronológico dos últimos 100 anos, tivemos tentativas de golpe do movimento tenentista em 1922 e 1924, contra Arthur Bernardes; a Revolução de 30; a Revolução Constitucionalista de São Paulo de 32; a Intentona Comunista de 1935; o golpe do Estado Novo de 1937; a destituição de Getúlio Vargas em 1945; o contragolpe preventivo do Marechal Lott em 1955, para assegurar a posse de Juscelino Kubitschek; e duas rebeliões contra Juscelino Kubitschek: Jacareacanga, em 1956, e Aragarças, em 1959.
A lista continua e inclui o veto dos ministros militares à posse do vice-presidente João Goulart, quando da renúncia de Jânio Quadros em 1961; o golpe militar de 1964; a prorrogação do mandato de Castello Branco com o cancelamento das eleições de 1965; o Ato Institucional número cinco de 1968; o impedimento à posse do vice-presidente Pedro Aleixo em 1969; a outorga, pelos ministros militares, da Emenda Constitucional número um — que, na verdade, foi uma verdadeira Constituição de 1969, com o Congresso fechado; os anos de chumbo do governo Médici, com tortura, censura e exílio; e o fechamento do Congresso pelo presidente Geisel, em 1977, para outorga do “pacote de abril”, mudando as regras eleitorais.
Do início da República até a Constituição de 1988, o sistema de justiça não conseguiu se opor de forma eficaz às ameaças autoritárias e às quebras da legalidade constitucional.
Um pouco da história do Supremo Tribunal Federal. Não foram poucas as ameaças, o desrespeito e as violências contra o Supremo Tribunal Federal. Na Proclamação da República, a Constituição de 1988, ainda com Floriano Peixoto, por longo período deixou de nomear ministros para o Tribunal, levando à falta de quórum para julgamentos e também em desconsideração. O próprio Floriano Peixoto nomeou, em outro momento, para o Tribunal, um médico e um general, sem nenhuma formação jurídica.
Em 1931, Getúlio Vargas reduziu o número de ministros e aposentou compulsoriamente, por decreto, seis deles, em retaliação aos que haviam condenado os insurrectos dos movimentos de 1922 e 1924. Ainda sob Vargas, em 1937, a Constituição do Estado Novo previu que decisões do Supremo que declarassem a inconstitucionalidade de lei podiam ser submetidas ao Congresso e derrubadas.
Em janeiro de 1969, o regime militar aposentou compulsoriamente, com base no Ato Institucional número cinco de 68, os ministros Evandro Lins e Silva, Victor Nunes Leal e Hermes Lima. E ainda em 1969, a Junta Militar, com o Congresso fechado, mais uma vez aumentou o número de ministros do Supremo, de 11 para 16, para nomear juízes alinhados com o regime.
Como se passam as coisas numa ditadura? Eu — e muitos de nós aqui — vivemos uma ditadura. Conhecemos pessoas que foram torturadas. Conhecemos os jornalistas que foram censurados e compositores que tiveram suas músicas proibidas. Conhecemos pessoas que foram para o exílio, professores que foram arbitrariamente afastados de seus cargos. Muitos de nós ficamos sabendo, de fontes seguras, de pessoas que desapareceram — ou melhor, foram desaparecidas.
Um desses episódios foi recentemente retratado, com refinado toque de humanidade, no filme Ainda estou aqui, de Walter Salles, com Fernanda Torres, Fernanda Montenegro e Selton Mello. Ficamos sabendo também de pessoas que foram assassinadas em quartéis, e as autoridades simularam um suicídio — como nos casos de Vladimir Herzog e de Manoel Fiel Filho. Muitos de nós conhecemos a jornalista que foi presa aos 18 anos, grávida, e mantida por horas em um quarto escuro com uma cobra jiboia. É também de conhecimento público que alguns adversários políticos do regime militar tiveram seus corpos arremessados de helicópteros em alto-mar.
Todos nós acompanhamos ou estudamos o atentado do Riocentro, em 1981, quando integrantes dos porões da ditadura já pretendiam explodir bombas durante um show de música popular brasileira, com a presença de milhares de jovens. E quando o tapa passa a dar sorte, a bomba que atingiria o público atingiu os próprios terroristas. A investigação levada a efeito foi uma constrangedora falsificação da verdade.
Nós vivemos uma ditadura. Ninguém me contou. Eu estava lá. E por isso, para mim, para muitos de nós, para a nossa geração, o constitucionalismo e a democracia são tão importantes. Eles são o antídoto contra tudo isso que eu descrevi. Todas as pessoas têm em si o bem e o mal. O processo civilizatório existe para reprimir o mal e potencializar o bem. As ditaduras frequentemente fazem o contrário.
A Constituição de 1988, no entanto, tem proporcionado ao país o mais longo período de estabilidade institucional da nossa história republicana. E não foram tempos banais. Tivemos dois impeachments de presidente da República — um deles bastante controvertido. Tivemos hiperinflação, planos econômicos fracassados e escândalos de corrupção. Mas ninguém, diante de todas essas vicissitudes, cogitou, em qualquer momento, de uma solução que não fosse o respeito à legalidade constitucional. Nós superamos os ciclos do atraso. E o nosso papel aqui no Supremo Tribunal Federal é o de impedir a volta ao passado.
O que aconteceu entre nós nos últimos anos, a partir de 2019? Vivemos episódios que incluíram tentativa de atentado terrorista, bomba no aeroporto de Brasília, tentativa de invasão da sede da Polícia Federal, tentativa de explosão de bomba no Supremo Tribunal Federal, acusações reiteradamente falsas de fraude eleitoral na eleição presidencial. Também houve mudança de relatório das Forças Armadas, que havia concluído pela ausência de qualquer tipo de fraude nas urnas eletrônicas. Houve ameaças à vida e à integridade física de ministros do Supremo Tribunal Federal, que se repetem até hoje, inclusive com o pedido de impeachment. Acampamentos de milhares de pessoas em portas de quartéis, pedindo a deposição do presidente eleito.
Tudo culminando em 8 de janeiro de 2023, com a invasão e depredação da sede dos Três Poderes da República. E, de acordo com a denúncia do Procurador-Geral da República — ainda por ser julgada —, uma tentativa de golpe que incluía plano para assassinar o presidente da República, o vice-presidente e um ministro do Supremo Tribunal Federal.
Foi necessário um tribunal independente e atuante para evitar o colapso das instituições, como ocorreu em vários países do mundo: do Leste Europeu à América Latina. Estavam em curso, perante este Tribunal, perante a Primeira Turma deste Tribunal, ações penais que buscam apurar as responsabilidades por crimes diversos contra o Estado Democrático de Direito, previstos em lei aprovada em setembro de 2021.
A denúncia da Procuradoria-Geral da República foi aceita com base em indícios de crime. As ações penais têm sido conduzidas com observância do devido processo legal, com transparência em todas as fases do julgamento. Sessões públicas, acompanhadas por advogados, pela imprensa e pela sociedade. Advogados experientes e qualificados ofereceram o contraditório. Há, nos autos, confissões, áudios, vídeos, textos e outras provas que visam documentar os fatos.
A marca do Judiciário brasileiro — do primeiro grau ao Supremo Tribunal Federal — é a independência e a imparcialidade. Todos os réus serão julgados com base nas provas produzidas, sem qualquer tipo de interferência. Venha de onde vier, venha de onde vier.
Faz-se aqui o reconhecimento ao relator das diversas ações penais, o ministro Alexandre de Moraes, que, com inexcedível empenho, bravura e custos pessoais elevados, conduziu as apurações e os processos relacionados aos fatos acima descritos. Nem todos compreendem os riscos que o país correu e a importância de uma atuação firme e rigorosa — mas sempre dentro do devido processo legal, em contraste com um passado que nem vai tão longe.
Cabe registrar aqui: não houve nenhum desaparecido, ninguém torturado, nenhuma acusação sem prova. A imprensa inteiramente livre. As plataformas digitais com regulação equilibrada, que exclui apenas a prática de crimes e de atos ilícitos. Mas somos um dos poucos casos no mundo em que um tribunal, ao lado da sociedade civil, da imprensa e de parte da classe política — e da maior parte da classe política — conseguiu evitar uma grave erosão democrática sem nenhum abalo às instituições.
Em meio a muita incompreensão, contribuímos decisivamente para preservar a democracia. E, como gosto sempre de lembrar: a democracia tem lugar para todos — conservadores, liberais e progressistas. Ninguém tem o monopólio da virtude. E ninguém tem o monopólio do amor ao Brasil. Quem ganha as eleições, leva. Quem perde, pode tentar ganhar nas eleições seguintes. E quem quer que ganhe precisa respeitar as regras do jogo e os direitos fundamentais de todos.
Isso é que é uma democracia constitucional. Essa é a nossa causa. Essa é a nossa fé racional. E, como toda fé sinceramente cultivada, não pode ser negociada.
Obrigado pela atenção.