Na sexta-feira, 16, a ministra substituta do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) Vera Lúcia Araújo foi até o prédio onde funciona da AGU (Advocacia-Geral da República), em Brasília, para participar de um seminário promovido pela Comissão de Ética Pública da Presidência da República. Ela havia sido convidada para proferir uma palestra sobre discriminação. Logo na entrada, foi vítima de preconceito racial.

Identificou-se a duas recepcionistas e a um vigilante como palestrante, com a carteira de ministra do TSE. Segundo Vera Lúcia, os três se recusaram a verificar o documento. Contou à coluna ter ficado na portaria por cerca de 15 minutos, até que uma pessoa da organização do evento fosse até o local para liberar a entrada.

O fato ocorreu no prédio da CNC (Confederação Nacional do Comércio), que também é ocupado pela AGU. O episódio foi reportado ao ministro da AGU (Advocacia-Geral da União), Jorge Messias, e à presidente do TSE, ministra Cármen Lúcia, que ficaram de tomar providências.

Em conversa com a coluna, Vera Lúcia conta que costuma sofrer preconceito racial – e que, apesar de ser uma prática comum, precisa ser sempre denunciada.“A violência não é somente o soco na cara físico, é o soco na cara moral, ético, preconceituoso, racista. Não tem outro nome. Não adianta a gente querer dar um apelido à pratica”, afirmou.

A senhora foi barrada na entrada do evento?
Vera Lúcia Araújo – Na sexta-feira, cheguei na portaria do prédio e dei meu nome. Eles olharam um papel e falaram que o nome não estava lá. Tirei minha carteira de identificação de ministra substituta do TSE. Nem pegaram a carteira, não olharam. Falei que era ministra, daí pediram para eu ligar para alguém da organização. Eu disse que não, porque sabia que não havia problema na organização. Chamaram o vigilante, que ficou fazendo umas ligações. Ele também não quis pegar minha identificação, mas todos viram que eu tinha. O vigilante gritou de longe, perguntou qual o meu nome. Eu não gritei de volta, eu disse que estava com minha identificação. Ele disse ao telefone: “A mulher aqui nem quer dizer o nome dela”. Eu respondi que ele estava mentindo. Até que veio alguém da organização do seminário e me fez entrar.

A senhora ficou brava?
A mensagem subliminar era: “Você aqui não é nada, não passa de uma neguinha qualquer”. Não foi dito, mas estava explícito. Eu estava calma, fiz questão de não ter agressividade, embora a situação exigisse um pouco.

Por quanto tempo a senhora ficou na portaria?
Eu tinha recebido orientação para chegar 20 minutos antes, o evento estava marcado para as 10h. Antes de 9h40 eu estava lá. Ficaram ali por cerca de 15 minutos até que aparecesse alguém com autoridade para me dar acesso ao prédio.

Sobre o que era a palestra para a qual a senhora foi convidada?
Ironicamente, o tema do seminário era assédio e discriminação na perspectiva da boa gestão. Na palestra, eu não fiz alusão ao fato, para não perder a centralidade do tema.

A senhora foi vítima de discriminação racial no episódio?
Óbvio, manifestamente. O desprezo, o descaso… Óbvio que, infelizmente, não fui descriminada pela primeira vez, é recorrente. Desde o momento que eu cheguei no prédio, apresentei minha identificação como ministra do tribunal. Ali, era a manifesta rejeição a que eu pudesse estar nessa posição. Esse tipo de atitude, você percebe. Em nenhum momento questionei a segurança do estabelecimento. Nenhuma circunstância autoriza qualquer pessoa a ter prática discriminatória. A carteira é grande, vermelha, com letras metálicas, não era uma coisa pequenininha, não era um “QR code”. Ninguém quis pegar a carteira, era um desprezo absoluto. Todo mundo sabe que ninguém branco é barrado assim.

Havia alguém branco barrado na porta do evento?
Quanto cheguei, estava chegando uma pessoa, coincidentemente outra Vera, branca, que foi mediadora do debate. Ela entrou e eu continuei lá, barrada na porta do prédio.

Como a senhora se sentiu nessa situação?
É desqualificante, é humilhante. Até porque sou ativista no combate ao racismo. O espaço público que ocupo decorre dessa luta anti-racista. É violento. A violência não é só física. A violência não é somente o soco na cara físico, é o soco na cara moral, ético, preconceituoso, racista. Não tem outro nome. Não adianta a gente querer dar um apelido à pratica.

A senhora contou o episódio a colegas?
Quando eu saí do evento, fui almoçar com amigas da AGU, advogadas e procuradoras, e relatei o fato. Uma delas transmitiu, com a minha autorização, a notícia ao Jorge Messias. Ele me telefonou quando soube, no sábado de manhã. No domingo, relatei o fato a uma assessora da ministra Cármen Lúcia, que me chamou no gabinete na segunda-feira para entender os fatos. Na sessão de terça-feira, ela fez a manifestação no plenário do TSE.

Apesar de ser uma prática comum, nem todos têm acesso a um canal de denúncia.
No TSE, eu presido a Comissão de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio Moral, ao Assédio Sexual e à Descriminação. Seria indigno eu participar dessa comissão sem dar conhecimento do fato, sem tomar uma atitude. Eu não podia me manter silente, o fato não pode ficar impune. Não podemos perder esse espaço institucional para dar visibilidade a situações corriqueiras, que ocorrem com pessoas que não têm acesso a um canal de denúncia.

O que pode ser feito a partir dessa denúncia?
Serão adotados procedimentos administrativos de apuração. O subprocurador-geral Eleitoral também se colocou à disposição para, se for o caso, fazer uma representação criminal. Tem as imagens de segurança, vão ver que nenhum dos funcionários quis formalizar o procedimento de identificação. Foi uma recusa sistemática de três pessoas: as duas recepcionistas e o vigilante. A própria Lei de Licitações remete à contratação empresas que tenham governança interna. É preciso ver se é o caso de punir a empresa terceirizada. Que orientação ela dá aos funcionários para tratar assim pessoas negras? Que não fique impune!

O evento foi organizado pela Comissão de Ética Pública da Presidência da República. Isso é grave?
O seminário, o convite a mim, são mostras do compromisso da Comissão. A responsabilidade pela ocorrência é da CNC, sua terceirizada.