O início da primavera encerrou um inverno de descenso nas ruas brasileiras e, em especial, nas lutas populares e sociais. Quando, no último dia 21 de setembro, milhares de pessoas foram às ruas protestar em diversas capitais pelo Brasil, cristalizou-se não apenas a explícita insatisfação popular contra a chamada PEC (Proposta de Emenda Constitucional) da Blindagem e a vergonhosa proposta de anistia que o bolsonarismo e parte da direita tentam levar adiante, como também reafirmaram a capacidade da esquerda de liderar a mobilização no país, com agendas que dizem respeito a todo brasileiro democrata e inconformado com as desigualdades que nos atingem. Foi, portanto, mais do que um retrato do esvaziamento e do isolamento crescentes do bolsonarismo e daqueles ventríloquos que tentam passar a imagem de liberais democratas mas, no fundo, querem proteger Jair Bolsonaro e os golpistas, foi também a retomada de nossa capacidade de mobilizar e chamar à luta.

O Brasil mudou, e as manifestações, realizadas com sucesso em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte, Recife e tantas outras capitais, são a prova inconteste dessa mudança. Em todo o país, o povo foi às ruas contra a impunidade, contra a anistia e contra os privilégios. E, o mais importante, uma parcela significativa do Brasil e, principalmente, a juventude, tomaram consciência de que é preciso refazer esse histórico de injustiças. Não se tolerará mais que ricos, a minúscula parcela de privilegiados, siga sem pagar devidamente Imposto de Renda, enquanto a maioria de brasileiros, pobres ou de classe média, trabalhem tanto, seis dias por semana, de 8 a 12 horas diárias, e paguem proporcionalmente muito mais. É uma mudança de espírito o que está ocorrendo no Brasil – do repúdio à família Bolsonaro, a Donald Trump e às suas ameaças à soberania nacional, até a defesa da democracia, do contrato social brasileiro e de um modelo econômico mais justo e mais inclusivo.

A prova imediata dessa resistência popular e seus efeitos positivos sobre a política brasileira está nos atos, logo a seguir, do próprio Congresso. Primeiro, o Senado deixou claro que não embarcaria na agenda da impunidade que a Câmara dos Deputados tentou instituir. Segundo, foi esse recado que permitiu avançar na votação do projeto que isenta do Imposto de Renda pessoas que ganham até R$ 5 mil mensais, depois de longuíssima demora. Terceiro, o apoio empresarial para que o governo norte-americano abra canais de diálogo com o governo brasileiro, traduzido na manifestação simpática do presidente Donald Trump dirigida ao presidente Lula, durante a Assembleia-Geral da ONU – com possibilidade concreta de uma conversa até então interditada em busca de soluções para os dois países.
Mas é preciso mais, de modo que esses aparentes recuos não se mostrem provisórios ao sabor das conveniências.

Passamos muito tempo com as elites tentando nos impingir a ideia de que não haverá mais luta social e mobilização, dada a força da direita. A vida e a experiência, no entanto, nos ensinam que a luta não cessa. Por isso é hora de aproveitar esse impulso mobilizador que se viu nas ruas no fim de setembro para acumular musculatura política, sem perder de vista a correlação de forças e o estágio em que estamos. Com uma certeza: sem a luta social e a mobilização, não há saída.

Na década de 1980 oscilávamos entre as palavras de ordem “Constituinte Já” e “A greve geral derruba o general” quando a “Diretas Já” passou a sintetizar e expressar a vontade nacional. As múltiplas agendas externadas nas manifestações de setembro mostram uma convergência das palavras de ordem nas ruas: direitos; inclusão; justiça social; justiça tributária; democracia; soberania; repúdio aos extremistas.

Já havia um crescimento dos atos convocados em apoio ao movimento VAT contra a escala 6×1 e contra a anistia aos golpistas. Hoje está claro o tamanho do apoio popular na luta contra os juros, a favor da isenção do IR e pela taxação dos super-ricos e uma reforma tributária progressiva. Não é uma força exclusiva dos protestos no Brasil, como se viu nas manifestações intensas realizadas recentemente na França, com os franceses reagindo à intenção do primeiro-ministro de abolir feriados anuais, pedindo redução dos custos médicos para os assalariados e cobrando a implementação de condições mais generosas de baixa por doença – e, sobretudo, o protestando contra a classe política, contra cortes orçamentários, a favor de impostos para a alta renda e mais investimentos em serviços públicos.

Como lá, os brasileiros querem a inclusão da grande maioria na soma de riquezas do País. Aqui podemos fazer isso por meio de políticas públicas, de um sistema educacional gratuito, de saúde pública, de criação de empregos e de proteção aos trabalhadores, inclusive a valorização do salário mínimo – e não, como quer a direita, desvincular o salário mínimo com aposentadorias, tirar os pisos da saúde e da educação, privatizar a Previdência, a Petrobras e os bancos públicos. Essa é a agenda clara, por exemplo, do governador Tarcísio de Freitas. As ruas de setembro simbolizam o reencontro do País com a agenda progressista, hoje liderada pelo presidente Lula.

Essa jornada, no entanto, está apenas no início. Ela só vai acabar quando mudarmos a correlação de forças no Congresso Nacional. E radicalmente. Afinal, é o Congresso que sustenta as reformas, avança ou contém iniciativas inaceitáveis como a PEC da Blindagem (ou da impunidade), namora com a anistia aos golpistas e intimida ou dialoga com os demais poderes, como o Executivo e o Supremo Tribunal Federal – mas resistiu a acelerar a votação da isenção do Imposto de Renda para os brasileiros que ganham até R$ 5 mil, não vota o Vale Gás e a isenção das contas de luz até 80 kWh/mês, não vota, enfim, medidas de interesse do Brasil que o governo Lula tomou para proteger a economia, as empresas e os brasileiros frente ao ataque tarifário de Trump ao País. As manifestações demonstraram o tamanho do apoio a agendas de outra ordem, hoje dissonantes em relação aos interesses da atual legislatura.

Tenho insistido que o Brasil precisa de uma revolução política e social e é nosso dever colocar em debate as escolhas necessárias – caminhos e modelos distintos que estão em jogo e são de interesse direto dos mais pobres e das classes médias. Nossas elites renunciaram ao Brasil e se agarraram aos privilégios que impuseram ao país e, por essa razão, costumam recusar toda e qualquer política de distribuição de renda, riqueza e patrimônio. Em setembro, as manifestações nas ruas mostraram que não nos vencerão, o que nos deixa sob o desafio dos próximos meses. Eles exigirão a continuidade e o aprofundamento dessa mobilização.

José Dirceu é um político brasileiro, advogado, consultor e militante de esquerda com uma longa trajetória no cenário político do país. Autor de três livros – Abaixo a Ditadura (1998), Tempos de Planície (2011) e Zé Dirceu – Memórias volume 1. Iniciou sua militância política durante os anos de ditadura militar no Brasil, engajando-se no movimento estudantil, do qual foi líder entre 1965 e 1968. Foi deputado estadual por São Paulo, exerceu três mandatos de deputado federal, e ministro-chefe da Casa Civil durante o primeiro Governo Lula, em 2003. Foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, seu secretário-geral e presidente por quatro mandatos