O vídeo de quase 50 minutos que o youtuber Felipe Bressanim Pereira, mais conhecido como Felca, publicou no início de agosto de 2025 expôs um problema já conhecido: a exploração e sexualização de crianças e adolescentes nas redes sociais. O conteúdo, direto e documentado, descrevia práticas de criadores de conteúdo que usavam a “adultização” como estratégia para atrair visualizações e lucro, inclusive com a conivência implícita dos algoritmos que favorecem materiais de alto engajamento, independentemente de seu impacto social.

A reação foi imediata. Em poucos dias, o vídeo alcançou milhões de visualizações. Perfis foram denunciados e perderam monetização. Investigações em andamento ganharam fôlego e políticos de diferentes partidos e espectros políticos se manifestaram. Projetos de lei foram protocolados às pressas e alguns parlamentares passaram a falar em uma “Lei Felca” para regulamentar e punir práticas de exposição indevida de menores no ambiente digital.

Esse desdobramento é revelador em diversos sentidos, e aqui eu não me refiro apenas ao fato de reconhecer a gravidade daquilo que Felca denunciou, mas de entender por que algo tão grave precisava de um catalisador externo para se tornar uma prioridade política. O tema não era novo. Órgãos de proteção à infância e especialistas já alertavam há anos para a banalização da exposição sexualizada de crianças na internet. Mas, até então, o assunto transitava lentamente pelos corredores legislativos, preso a audiências públicas espaçadas, pareceres técnicos engavetados e projetos de lei sem previsão de votação.

O caso Felca nos mostra que, quando a pressão pública é intensa e visível, a política brasileira consegue reagir com rapidez. O problema é que essa velocidade raramente se aplica a outras pautas sociais igualmente urgentes, mas que não encontram um estopim tão midiático. Então, na política brasileira, as discussões só avançam em torno daquilo que gera repercussão imediata e ampla? E os problemas que afetam aquela parcela da população menos visível ou menos representada?

A celeridade no tratamento dessas questões não pode depender do acaso ou do alcance de um vídeo. Questões como proteção à infância, combate à violência doméstica, saneamento básico ou acesso a medicamentos não deveriam precisar de um momento viral para entrar na ordem do dia. A ausência de resposta rápida em temas desse tipo implica em manter milhares de pessoas expostas a riscos que poderiam ser mitigados com medidas legislativas, regulatórias ou orçamentárias relativamente simples.

Há aqui um dilema político real. Tramitações aceleradas podem reduzir o espaço para debates aprofundados e gerar leis mal formuladas. Mas é possível criar protocolos que permitam dar prioridade a pautas de caráter social sem abrir mão de qualidade legislativa. Isso passa pela definição de critérios objetivos de urgência, pelo estabelecimento de prazos máximos para relatorias e votações, e, principalmente, pela garantia de que a burocracia não pode ser tomada como pretexto para inação.

O impacto do caso Felca também nos ensina que a política precisa se reconectar com a percepção pública de urgência. Nesse episódio, o Congresso reagiu porque entendeu que ignorar o tema teria um alto custo político. Essa percepção poderia ser ampliada para outras áreas se houvesse canais mais ágeis de escuta social e de tradução das demandas em processos legislativos. Hoje, mesmo quando há consenso técnico e social sobre um problema, a resposta institucional se perde em disputas de protagonismo ou em cálculos eleitorais.

O episódio ainda deixou clara a força da articulação transversal. Parlamentares de diferentes partidos, influenciadores, jornalistas e órgãos de justiça atuaram em sincronia incomum para os padrões nacionais. Isso mostra que, em temas de proteção social básica, há espaço para superar clivagens ideológicas. O desafio que se coloca é o de transformar essa convergência episódica em método, algo que permita que, diante dos alertas consistentes dos órgãos técnicos e da sociedade civil, a engrenagem política seja ativada automaticamente.

Em última instância, o caso Felca nos ensina sobre como os políticos brasileiros escolhem suas prioridades. Ao expor uma violação inaceitável e ao provocar uma onda de comoção social, ele nos mostra que a lentidão não é algo inevitável, pois é, em boa medida, resultado de escolhas e de inércia. Se quisermos evitar que pautas vitais dependam de picos de visibilidade para avançar, é preciso criar uma cultura política onde urgência social e urgência legislativa caminhem juntas.

Fillipi Nascimento é cientista Social. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper