Mesmo após 37 anos de promulgação da Constituição Federal de 1988, algumas áreas parecem estar imunes às suas disposições, resistindo em aceitar sua lógica democrática e a prevalência dos direitos fundamentais. É o caso da violência policial.

A Constituição traz uma série de dispositivos voltados a prevenir, reparar e responsabilizar episódios de violência policial. Demanda que ninguém será submetido à tortura ou a tratamento cruel e degradante; que são assegurados o direito à vida, à integridade física e moral a qualquer pessoa presa ou investigada; que deve ser respeitado o devido processo legal, com a vedação do uso de provas ilícitas, com julgamento por autoridade judicial competente, direito a recursos e garantia de habeas corpus contra qualquer prisão ilegal. A Constituição ainda incorpora os tratados internacionais de direitos humanos sobre o tema.

Não bastasse a enunciação de direitos humanos e fundamentais de qualquer pessoa acusada, a Constituição incumbiu o Ministério Público do controle externo da atividade policial e municiou o Judiciário de prerrogativas de independência e imparcialidade para cumprir essa função.

Ainda assim, as instituições do sistema de justiça resistem em cumprir a Constituição quando o tema é violência policial. Persistente, sistemática e sem controle, a violência policial parece ter vencido a Constituição. Dados de violência policial no país são aterradores. Dados da ausência de responsabilização são ainda piores.

As instituições policiais não só resistem em incorporar a lógica constitucional democrática e centrada no respeito aos direitos humanos como adotam estratégias para enfraquecê-la. Desde o registro das mortes em ocorrências policiais (com descrições como “encontro de cadáver” e “resistência seguida de morte”), passando pelas câmeras corporais desligadas, com problemas técnicos ou sem bateria durante megaoperações, instituições policiais criam uma realidade fictícia para sustentar a violência.

O Ministério Público, por sua vez, tem revelado uma incapacidade profunda e estrutural em promover o controle externo das polícias e responsabilizar os envolvidos em chacinas – da base até o topo da cadeia de comando. A ausência de uma resposta por parte do Ministério Público é tão significativa que se torna conivência. O Judiciário, na maior parte das vezes, endossa a violência policial.

Nem mesmo as mudanças constitucionais voltadas a enfrentar a persistência da violência policial, criadas pela Emenda Constitucional 45/2004, surtiram efeito. A federalização de graves violações de direitos humanos se tornou um instrumento inócuo. A Procuradoria-Geral da República se contém em pedi-la; o Superior Tribunal Justiça se contém em aplicá-la, independentemente da gravidade do caso. Tal como interpretada atualmente, a federalização somente pode ocorrer após anos de inépcia comprovada da justiça estadual.

Quando são iniciadas as investigações federais, não sobraram mais provas sobre o caso. Outra reforma constitucional, que criou o Conselho Nacional do Ministério Público para exercer o controle externo do Ministério Público, deu recentemente sua maior contribuição para a continuidade da política de extermínio ao afastar instâncias federais de atuação no caso. Sucumbiram à lógica do extermínio de Estado, para o qual todas as instituições concorrem.

Carandiru, Jacarezinho, Crimes de Maio, Vigário Geral, Corumbiara, Candelária, Eldorado dos Carajás, Vila Cruzeiro, Baixada Santista, o mais recente Massacre da Penha e do Alemão e muitos outros. De chacina em chacina, sob o olhar complacente das instituições, o extermínio vence a Constituição.

Eloísa Machado é coordenadora do projeto Supremo em Pauta, da Fundação Getúlio Vargas (FGV)