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Era Trump: o mundo foi longe demais com a globalização?

Com lideranças mundiais atônitas diante da guerra de tarifas dos Estados Unidos, um dos maiores mercados consumidores do planeta, a discussão sobre um processo de “desglobalização” ganhou força. O PlatôBR ouviu especialistas que avaliam as tendências e como fica o Brasil nesse cenário

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Vaias de canadenses durante um jogo de basquete abafam a performance do hino americano, numa mudança de comportamento de torcedores normalmente amigáveis. Autoridades mexicanas respondem a provocações de um parceiro histórico nas redes sociais dizendo que os Estados Unidos deveriam se chamar “América Mexicana”. O governo da Colômbia proíbe a entrada de avião no país vindo dos Estados Unidos com deportados colombianos. Os americanos ameaçam tomar o canal do Panamá, a Groelândia, anexar o Canadá e mudar o nome do Golfo do México e ainda intimidam meio mundo com barreiras tarifárias. A outra metade reage com mais ameaças. A Europa investe para se rearmar.

Afinal, o que aconteceu no planeta globalizado onde, desde a década de 90, há prevalência de conceitos liberais e vive-se uma interligação econômica sem precedentes na história mundial? A volta de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, determinado a levar de volta para o país toda cadeia de valor produtiva, que se espalhou pelo mundo em busca de menores custos e mais eficiência, chacoalhou as lideranças nos quatro cantos do globo. O momento é de revisão de todas as estruturas produtivas. Estamos, com isso, “desglobalizando”?

“O Mundo não vai deixar de fazer comércio e as cadeias de valor dos produtos não serão interrompidas. Mas há uma mudança de paradigma”, diz Victor do Prado, professor de geoeconomia da universidade SciencesPo de Paris e membro do conselho internacional do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). “É exagerado falar em desglobalização”, observa o ex-secretário de Comércio Exterior Welber Barral. “Não se trata de uma reversão integral da visão da globalização, mas outros fatores passar a fazer parte da estratégia das empresas”, emenda Antônio Corrêa de Lacerda, professor de pós-graduação da PUC-SP e ex-presidente do Conselho Federal de Economia.

Efeito pandemia
A discussão sobre o nível da globalização e os riscos decorrentes dele, na verdade, entraram nas análises estratégicas das empresas após a pandemia da Covid-19, em 2020, segundo os especialistas. “A pandemia expôs a fragilidade de depender do abastecimento externo diante da falta dos EPIs”, lembra Lacerda, referindo-se aos equipamentos de proteção individual necessários para a atuação dos profissionais da área de saúde. Com 90% dos materiais vindos da China, que parou a produção por causa da pandemia, houve desabastecimento. "Na Covid, os países viram que não podiam ficar tão dependentes assim do setor externo", explica Barral.

A esse problema somaram-se outros: os eventos climáticos que estão mais presente hoje na vida das pessoas e das empresas. “A ilusão de muitos países de que bastava transferir para outros a indústria poluente se foi porque o planeta é o mesmo e os problemas climáticos em outros países te afetam também”, argumenta Lacerda. Além disso, conflitos como o da Ucrânia com a Rússia mostram o quanto é difícil terceirizar a segurança, mesmo contando com parceiros históricos.

Na sequência, o mundo se deparou com a segunda gestão de Donald Trump no comando de uma das maiores potências do planeta, os Estados Unidos. Com uma política intimidatória, ele tem reforçado o que os especialistas chamam de um fenômeno de “reglobalização”. Na prática, significa a troca do fator “custo", antes tratado como algo preponderante nas escolhas e decisões estratégicas de empresas e governo, pelo “abastecimento”.

“Não adianta ter o fornecedor mais barato, que dará mais eficiência, se ele não garante o abastecimento”, diz Lacerda. “Então, há um reposicionamento das cadeias produtivas internacionais e, agora, a questão tarifária, sem dúvida, é um fator a mais que as empresas passam a avaliar para reposicionar suas fábricas”, acrescenta. Um exemplo do que os especialistas citam como “erro estratégico” pela excessiva dependência do mundo é a demanda dos “chips de Taiwan”. Segundo o professor da PUC-SP, “o mundo se tornou dependente de Taiwan porque todo aplicativo industrial usa chip de lá. Foi erro estratégico. Como reverter? Não é simples assim”.

Para Victor do Prado, “haverá um rearranjo, mas o conceito [da globalização] permanecerá”. Além disso, o mundo hoje vê os Estados Unidos como um fator de instabilidade. Ele diz que é difícil ignorar o país mais rico e o maior importador. No entanto, com as tarifas anunciadas por Trump, a relação comercial pode ficar impossível. A maior parte das ameaças do presidente americano, no entanto, ainda não entraram em vigor.

Novos blocos econômicos
Essa reavaliação estratégica das empresas está levando em conta três conceitos: i) reshoring, termo que refere-se à transferência da fabricação de um determinado produto de volta ao país onde ele é vendido ou onde está a sede da empresa; ii) friendshoring, que busca realocar parte da produção em países aliados, para garantir estabilidade nas operações diante de um cenário global incerto; iii) nearshoring, que consiste na transferência do trabalho para empresas mais econômicas e geograficamente mais próximas.

Com isso, na avaliação dos especialistas, caminha-se para uma aproximação entre novos blocos econômicos. “Pode-se ter novos blocos em torno da China e Europa”, analisa Prado. Nenhum dos especialistas aposta no sucesso de Donald Trump para levar de volta para os Estados Unidos, na marra, fábricas que se instalaram em outros países.

Segundo Barral, há movimentos que envolvem duas frentes distintas. Uma delas envolve empresas que podem até aumentar investimentos nos EUA para atender apenas a demanda interna. “Como acontece no Brasil, muitos investimentos não visam exportação, mas atender o mercado interno”, explica. A segunda é o chamado “Please the king”: “anuncia-se o que Trump quer ouvir, o empresário diz que vai fazer o investimento, começa a fazer estudo, a negociar incentivos com estados e, daqui a quatro anos, vê como está a situação política e econômica”.

Para o Brasil, o cenário requer alguns pontos de atenção. Um diz respeito ao fortalecimento da indústria nacional e à geração de valor das exportações brasileiras. “Somos um player global no comércio e em investimentos. Mas temos um desafio de reindustrialização e qualificação das nossas exportações” diz Lacerda, ressaltando que uma vantagem no país hoje é que o governo volta a falar em política industrial, e tem ainda o PAC e o programa de transição energética.

Victor do Prado destaca que é um bom momento para avançar com o acordo Mercosul-União Europeia, além de repensar a estratégia de parceiros comerciais. Em suas previsões, em cinco anos, o cenário global deve contemplar uma “China mais forte" e a Europa mais integrada, tentando diversificar com China, Japão e Austrália, e melhorando a relação com o Reino Unido, Canadá e México. Para Barral, neste momento, o Brasil tem a vantagem de estar mais atrasado na abertura comercial. “Ainda somos muito fechados, dependemos menos do mercado internacional e somos mais focados no mercado interno”. Mas, na sua opinião, há chances da avançar.

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