O povo deixou de ser prioridade
A aprovação da chamada PEC da Blindagem pela Câmara, somada ao avanço do PL da Anistia, expõe a tentativa de parte expressiva do Legislativo de transformar o mandato em salvo-conduto para práticas ilícitas. Centrão e bolsonaristas atuam de forma coordenada para restringir a atuação do Judiciário e blindar parlamentares e aliados de investigações e punições por crimes graves, como corrupção ou mesmo ataques ao Estado democrático de Direito. Ou seja, em vez de reforçar a responsabilidade de quem ocupa cargos públicos, o que se busca é erigir uma casta política acima da lei, em clara afronta ao princípio de igualdade entre cidadãos.
A PEC estabelece que, mesmo em flagrante delito, um parlamentar só pode ser preso se a Casa Legislativa assim decidir, em votação secreta, e por maioria absoluta. Assim, mesmo que um deputado ou um senador pudesse ser surpreendido no ato de cometer o crime, sua prisão dependeria da anuência corporativa de seus pares. Essa norma não só abre espaço para impunidade, como também esvazia a função primordial do Judiciário que é a de zelar pela aplicação da lei. O voto secreto, resgatado como mecanismo de proteção, retira do eleitor a possibilidade de saber como seus representantes se posicionaram em um tema que toca diretamente à integridade da democracia, permitindo que decisões importantes se percam nas sombras da política interna do Congresso. Parlamentares que hoje votam pela blindagem precisarão explicar em 2026 por que optaram pela impunidade (alguns, inclusive, se anteciparam), mas, até lá, o dano institucional já poderá estar consolidado.
Esse esforço de blindagem legislativa caminha junto ao PL da Anistia, que busca perdoar crimes relacionados ao golpe de 8 de janeiro e outros ataques ao regime democrático. A lógica é a mesma, reinterpretar a Constituição como se fosse um pacto de autodestruição, capaz de autorizar a morte da própria democracia. Não há respaldo jurídico para essa interpretação. O Supremo Tribunal Federal já deixou claro, no caso de Daniel Silveira, que não é possível conceder indulto a crimes contra o Estado democrático de Direito. Além disso, precedentes internacionais, sobretudo em matéria de direitos humanos, estabelecem há décadas que não cabe perdão para crimes graves. A insistência em uma anistia ampla e irrestrita é, portanto, um retrocesso civilizatório.
O Parlamento, que deveria ser espaço de defesa da cidadania e de construção de consensos em torno de políticas públicas, passa a funcionar como arena de autoproteção, onde a prioridade não é o interesse coletivo, mas a sobrevivência política e judicial de seus membros. A representação política se converte em privilégio, e não em responsabilidade. Essa inversão de valores corrói a legitimidade da instituição e agrava a distância entre sociedade e política. Em vez de ser mediador entre Estado e cidadãos, o Legislativo se fecha em um pacto corporativo que mina o equilíbrio entre os poderes e subverte o próprio sentido da democracia representativa.
O repensar da política brasileira, nesse contexto, se coloca como algo cada vez mais urgente. Não basta rejeitar a PEC ou barrar a anistia. É preciso alterar a lógica que produz esse tipo de proposta. O país precisa de reformas que reduzam o foro privilegiado, ampliem a transparência no uso de emendas parlamentares e garantam a publicidade integral das votações. É igualmente necessário fortalecer os mecanismos de fiscalização e controle externo, assegurando que o Judiciário e o Ministério Público possam exercer plenamente suas funções. Mais do que isso, é preciso cultivar uma nova cultura política, em que o mandato não seja visto como escudo contra a lei, mas como compromisso com o bem público. A democracia não se sustenta quando um poder tenta se colocar acima dos demais, e muito menos quando busca blindar-se da própria cidadania.
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