O Supremo contra o autoritarismo
Em tempos de crise de democracia, uma agenda de enfrentamento ao autoritarismo se apresenta ao tribunal. Há ações que questionam intentonas autoritárias, autoritarismos cotidianos, o autoritarismo passado e até futuros autoritários.
O Supremo Tribunal Federal foi devidamente reconhecido por assumir um papel de enfrentamento ao autoritarismo promovido pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. O tribunal bloqueou as medidas negacionistas relativas à pandemia de Covid-19, especialmente em proteção a grupos vulneráveis, vetou decretos ilegais e promoveu – e promove - a investigação e responsabilização de agentes envolvidos em ampla trama golpista, envolvendo a cúpula do governo, agências de inteligência e militares, sendo os ataques de 8 de janeiro um de seus episódios.
Não há dúvidas de que a maioria do tribunal se engajou nessa frente, dando prioridade a essas ações com respostas céleres e coletivas, e foi atacado por isso. Todos reconhecem essa importante atuação. Entretanto, há uma agenda mais ampla de enfrentamento ao autoritarismo que merece a mesma atenção do tribunal. Diversas ações em andamento no Supremo questionam medidas que partem da cúpula de governos locais e vão se entranhando no poder público e na relação que estabelecem com os cidadãos.
Constam na pauta do primeiro dia de julgamentos de 2025 (5 de fevereiro) dois casos que exemplificam os efeitos deletérios do autoritarismo cotidiano praticado pelo poder público: o questionamento sobre práticas de revista vexatória e parâmetros à atuação de forças policiais.
A ação sobre revista vexatória tramita no Supremo sob regime de repercussão geral e questiona a prática adotada, por alguns estabelecimentos prisionais, de realizar inspeções corporais invasivas, nas quais mães, esposas, irmãs e filhas de familiares de pessoas presas são obrigadas a ficarem nuas e terem seus ânus e vaginas vasculhados. A medida, claramente degradante e obviamente ineficaz, já conta com votos de três ministros para considerá-la inconstitucional.
Já a ação que objetiva estabelecer parâmetros à atuação de forças policiais tem o propósito de interromper a letalidade policial que atinge, de forma desproporcional e excessiva, a população pobre e negra de comunidades. Conhecida como “ADPF das favelas”, a ação pretende impor um marco democrático à atuação das forças de segurança. A ação conta com medida liminar referendada em plenário e tem sido responsável por diminuir a letalidade e aumentar a transparência de operações policiais.
Nessas duas ações, o tribunal pode reconhecer a violência praticada pelo estado brasileiro e reparar a discriminação, reafirmando o princípio basilar da democracia de que todos merecem igual respeito e consideração. Aplicar a Constituição nesses casos é impor um marco democrático às forças de segurança.
Por sua vez, o passado autoritário segue em julgamento no Supremo. Além da possível revisão da Lei de Anistia diante de decisões internacionais que as consideram inválidas, há casos individuais, de vítimas da ditadura, que buscam justiça. Recentemente, decisão afastou a Lei da Anistia em processo criminal contra militares acusados de ocultação de cadáver na Guerrilha do Araguaia. No mesmo sentido, o desaparecimento de Rubens Paiva – cuja história é retratada em Ainda Estou Aqui, filme indicado ao Oscar – aguarda julgamento no Supremo. O passado exige justiça e, diante dos desafios do presente, o tribunal pode aproveitar para revisitar sua equivocada posição sobre a constitucionalidade da Lei de Anistia.
Há ainda outras ações que demandam do Supremo uma postura ativa no combate ao autoritarismo que se projeta para o futuro. Tramita no tribunal uma ação que questiona a implantação de “escolas cívico-militares”, aberração criada no seio de governo golpista de Bolsonaro e incorporada por seu ex-ministro e agora governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas. A lei que institui esse projeto educacional militar segue em vigor e o pedido liminar segue pendente de análise, não obstante a evidente oposição entre educação emancipatória e escola militar. Está em curso um perigoso projeto de autoritarização do futuro que precisa ser rechaçado pelo tribunal.
A agenda de defesa da democracia deve se fortalecida pelo Supremo, sendo feita uma reparação àqueles que sofreram no passado e sofrem ainda hoje, cotidianamente, atos de violência de estado. A defesa da democracia deve ser prioritária, pelo ontem, por hoje e para o amanhã, para que não se esqueça, para que nunca mais se repita.
Eloísa Machado é coordenadora do projeto Supremo em Pauta, da Fundação Getúlio Vargas (FGV)
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