Brasília está de novo em pânico com uma investigação da Polícia Federal. Quase onze anos depois da deflagração da primeira etapa da Lava Jato, que varreria a elite política e econômica do país antes de ser enterrada, é a Operação Overclean, que prendeu um empreiteiro conhecido pelo sugestivo apelido de “Rei do Lixo”, que faz autoridades graúdas temerem o pior. O medo aumentou nas últimas horas, com o envio da investigação para o Supremo Tribunal Federal em razão do que já era óbvio: o envolvimento de gente com foro privilegiado no esquema, que mistura dinheiro público – inclusive de emendas, tema na moda – e suspeitas de corrupção, tráfico de influência e lavagem de dinheiro.
Até então, o caso estava na Justiça Federal da Bahia. Já era sabido que uma hora a apuração subiria de alçada. O motivo: as ligações estreitas do alvo principal, o empresário baiano José Marcos de Moura, o generoso e alegre dono da alcunha de “Rei do Lixo”, com figurões da política não apenas da Bahia, mas também da cena nacional – onde se dá com personagens, por exemplo, do topo da estrutura do Congresso Nacional. Nesta semana, depois de levar ao juiz original do caso, em Salvador, elementos que apontam para ligações de autoridades detentoras de foro privilegiado com a quadrilha investigada, a Polícia Federal fez com que as investigações fossem transferidas para o STF.
Como a remessa de um processo de uma vara de primeira instância para a mais alta corte do país é um procedimento que precisa passar por alguns ritos burocráticos, até a noite desta quinta-feira, 16, o caso ainda não havia chegado a Brasília. Espera-se que isso aconteça em breve. Mas, de antemão, mesmo não tendo aterrissado ainda nos escaninhos do Supremo, lado a lado com a preocupação entre os políticos conectados ao empresário rondava uma especulação que para eles é também aterradora: a de que, no STF, o caso possa cair nas mãos de Flávio Dino, já que na origem do inquérito há dinheiro de emendas e, hoje, o ministro é o xerife do que há de mais importante sobre esse assunto na corte.
O “Rei do Lixo” é muito próximo ao chamado Centrão. Ocupa, inclusive, um posto de dirigente no União Brasil, atualmente um dos maiores partidos do Congresso, e é amigo do peito de seu presidente, Antonio Rueda, agora autodenominado Tony Rueda, personagem de ascensão meteórica nos céus da política nacional.
As conexões do empreiteiro não param, porém, nas fileiras da legenda: embora tenha a carteirinha do União, pode-se dizer que suas conexões são bem ecléticas – e até perpassam os poderes da República. Autoridades a par do caso ouvidas pelo PlatôBR dizem que ele construiu, nos últimos anos, amizades muito sólidas não apenas com excelências do Legislativo, mas também com outras que ocupam cargos relevantes no Executivo e no Judiciário.
Até agora, a investigação quebrou sigilos, revolveu transações bancárias, teve acesso a mensagens privadas e planilhas, mas ainda há muito por fazer. Se, a partir do momento em que o caso chegar ao Supremo, houver disposição para avançar, será possível desdobrar e ampliar sensivelmente o mapa da mina que começou a ser descoberto na Bahia, nas fases iniciais da apuração. Por limitação legal, na primeira instância não era possível examinar as conexões mais graúdas, especialmente aquelas que levam ao topo do poder. Agora será. Mas, repita-se, é preciso querer.
Há dois caminhos. No próprio Judiciário e no front das investigações, em posições destacadas, há quem acredite que a operação tomará o mesmo caminho da Lava Jato em suas derradeiras fases porque o país vive hoje outro momento, em que não há muito interesse em desmontar estruturas graúdas de corrupção. A aposta entre esses é que haverá um esforço para enterrar o caso e não se falar mais nisso.
Na política, porém, há uma segunda leitura, igualmente pertinente: a de que a investigação pode ser transformada em um instrumento para contenção de poderes do Centrão e de alguns de seus principais líderes no Congresso, cada vez mais empoderados na relação com o Executivo. Seria, assim, uma espécie de espada de Dâmocles sobre as cabeças coroadas que, aqui e acolá, tentam submeter o governo às suas vontades e fazer exigências diversas - de cargos menores para aliados a ministérios inteiros. A se considerar essa hipótese, os desdobramentos do escândalo dependerão de como essas relações irão se desenvolver daqui por diante.
A Overclean já teve duas etapas ostensivas. A operação começou mapeando suspeitas de fraude em licitações na unidade baiana do DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas), órgão federal controlado em suas diferentes instâncias por apadrinhados de políticos que se tornou um dos principais sumidouros de verbas de emendas.
Foi espalmando esses primeiros indícios que os policiais acabaram por chegar a um esquema muito maior, na casa do bilhão, com uma rede de empresas que fraudavam licitações para ganhar contratos em diferentes regiões do país, abocanhavam recursos e, indicam as investigações, devolviam parte deles aos políticos que facilitavam todo o processo. No andar de cima dessa cadeia estaria o tal “Rei do Lixo”, preso em dezembro, que ficou conhecido assim por ter feito fortuna – e, claro, networking político – no mercado de prestação de serviços de limpeza urbana ao poder público.
O caso tem lances fantásticos, dignos daqueles a que a tevê e o cinema costumam recorrer para retratar a corrupção. Na primeira fase da operação, um vereador de Campo Formoso, no interior da Bahia, jogou uma sacola com R$ 220 mil em dinheiro vivo pela janela quando percebeu que seria preso pela Polícia Federal. O vereador é primo do deputado federal baiano Elmar Nascimento, do União Brasil, que até meses atrás era o favorito de Arthur Lira para sucedê-lo como presidente da Câmara. Campo Formoso é o berço político de Elmar.
Em outro lance cinematográfico, também no final do ano passado, os policiais monitoraram dois dos investigados que haviam embarcado em Salvador num jatinho particular com destino a... Brasília. Assim que o avião pousou na capital federal, os policiais deram o bote e encontram com a dupla nada menos que R$ 1,5 milhão em espécie. Os investigadores acreditam que o dinheiro seria entregue a políticos – seria um delivery de propina. Com eles havia ainda uma planilha com uma relação de contratos públicos. A viagem, sustentam os policiais, foi feita a mando do “Rei do Lixo”. Por tudo que já se sabe sobre o esquema, e pelo que ainda há para ser destrinchado, é possível entender perfeitamente por que há muitas excelências com medo.