A imprevisibilidade nas tarifas ameaça a estabilidade do comércio global, alerta Roberto Azevêdo, ex-diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) e hoje presidente global de operações da Ambipar.
Em entrevista ao Lisboa Connection, videocast sobre Brasil e Europa do canal Amado Mundo, o diplomata fez paralelos entre o cenário atual e a crise de 1929, discutiu os riscos do desmonte do multilateralismo e avaliou os desafios do comércio internacional.
Azevêdo, que depois da OMC foi vice-presidente da PepsiCo, também analisou as condições e o impacto do acordo entre Mercosul e União Europeia: “O protecionismo reduz o potencial de ganhos mútuos”.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista ou veja a íntegra ao final do texto.
Como foi lidar, no primeiro mandato de Trump, com críticas e tarifas dos EUA à OMC?
As críticas vinham dos Estados Unidos de forma muito vaga. Era difícil entender qual era o problema para eles, porque Trump estava em seu primeiro mandato e era desconhecido. As ideologias comercial, política e econômica dele eram um mistério para os analistas. A gente não sabia como, uma vez empossado, ele daria seguimento às ideias que havia postulado como candidato. Os republicanos defendem o comércio livre, tarifas baixas e intervenção menor do Estado. Já as mensagens dele vinham misturadas. Adotei uma postura de escuta, para entender melhor o que eles queriam. Estávamos diante de um elemento novo, um fator que poderia colocar em xeque todo o sistema, o que vemos hoje. Busquei uma boa relação com o USTR, Bob Lighthizer. Conversamos em Washington e depois em Paris, numa reunião da OCDE. Lá ele me disse: ‘I’m on board’. Desde o início houve confiança mútua. Sempre que ele pedia algo, eu honrava. Ele dizia: “Vou ter que dar umas pancadas em você na imprensa”, e eu respondia: “Tranquilo, pode bater, você sabe que eu vou dar canelada de volta”. Ele respondia: “Não tem problema, estamos entendidos”. Foi uma relação boa nesse aspecto, apesar da agenda deles ser difícil.
O que é a OMC e qual é sua importância?
A OMC sucedeu ao GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio), criado após a Segunda Guerra, com Banco Mundial e FMI. O GATT limitava tarifas e instituiu o princípio da nação mais favorecida, funcionando por rodadas de negociações até a Rodada Uruguai, em 1995, que deu origem à OMC. A novidade foi incluir serviços, propriedade intelectual, agricultura, e criou um sistema obrigatório de solução de controvérsias com possibilidade de retaliação. Hoje, são mais de 160 membros e as decisões se dão por consenso.
Com o multilateralismo desorganizado, qual sua visão sobre o rumo do comércio global?
É difícil responder, porque não depende apenas do que os Estados Unidos fazem, mas também das reações. Em 1929 e 1930, quando os EUA elevaram tarifas durante a crise, a recessão já estava em curso. O problema foi a retaliação: todos os parceiros também aumentaram tarifas e, em quatro anos, dois terços do comércio mundial desapareceram, agravando a recessão. Hoje, o risco é semelhante. As reações variam conforme o parceiro, mas a imprevisibilidade é a mesma. O teto tarifário dava previsibilidade e garantia investimentos, já que se conheciam custos de transporte e tarifas. Essa segurança desapareceu: Trump muda tarifas de país para país. O princípio da reciprocidade foi abandonado. É provável que haja uma desaceleração significativa, nos EUA e no mundo, possivelmente acompanhada de inflação. Aumento nos custos de produção e operação, o que não aponta para um bom cenário.
E as oportunidades para a Europa?
A Europa precisa reduzir a dependência dos Estados Unidos, embora essa aliança sempre exista pela força dos fluxos de investimento em ambos os sentidos. Hoje, é bastante protecionista em termos regulatórios, o que é natural na integração, mas precisa se abrir para o mundo. Também terá de assumir um papel de liderança que os EUA estão deixando de exercer, o que exigirá articulação interna.
E sobre o acordo Mercosul-União Europeia? Como isso pode impactar o empresariado brasileiro?
Depende de como for implementado. A Turquia tem acordo com a União Aduaneira Europeia, mas cheio de exceções e pouca previsibilidade. O ideal seria ter mais segurança, especialmente sanitária e fitossanitária, para evitar surtos ou barreiras técnicas. Regras claras e inspeções bilaterais ajudariam. O protecionismo reduz o potencial de ganhos mútuos.
Em um evento recente do PlatôBR em Nova York, o economista Paul Krugman (Nobel de Economia) foi otimista em relação ao Brasil. O senhor concorda?
Esse otimismo em relação ao Brasil é comum entre estrangeiros. Quem está de fora olha o macro, vê o Brasil como excelente: não sofre catástrofes naturais, é celeiro mundial de alimentos com tecnologia avançada, tem geopolítica favorável e interlocução com diferentes blocos. O potencial é extraordinário, muitos dizem que o país não tem como dar errado. Mas, internamente, predomina o pessimismo. O Brasil é mestre em dar tiro no pé: tem uma visão de curto prazo, com políticos pensando no ciclo de dois ou três anos, e não em dez ou 20. Questões estruturais, como a revolução no mercado de trabalho e a necessidade de reformar a educação, só dão frutos no longo prazo.
Hoje o senhor atua na economia verde, à frente da Ambipar. Como vê esse mercado?
As empresas já abraçaram essa agenda. O desperdício, as emissões e a deterioração ambiental não são sustentáveis. Por isso investem bilhões em circularidade e economia verde. E esses investimentos não ficam à mercê de ciclos políticos de três ou quatro anos. O que pode acontecer é falarem menos sobre isso em determinados momentos. O Brasil tem potencial extraordinário. Nossa matriz elétrica pode chegar a 95% limpa.
E quanto ao protecionismo cultural e migratório, como a restrição de vistos nos EUA e Canadá?
A tensão no mercado de trabalho alimenta a polarização política, como vimos com Trump e sua base. Esses problemas não vão desaparecer no curto prazo. Um subproduto é a busca por inimigos: culpa-se a importação ou o imigrante, quando, na verdade, dois terços dos empregos desaparecem por causa da inovação tecnológica. Repensar educação e apoio à transição da mão de obra é fundamental, mas não acontece da noite para o dia. Enquanto isso, o discurso é de culpar o estrangeiro ou o produto importado, o que rende discurso eleitoral.