A destinação de recursos do orçamento para os municípios e estados é sempre um fator multiplicador de votos e serve à estratégia de manutenção do poder nas mãos de quem já o tem. Isso vale para prefeitos, parlamentares, governadores e presidentes, ou seja, para quem disputa eleição. Basta ver o resultado das últimas eleições, com prefeituras inundadas de emendas, inclusive do orçamento secreto. Houve um recorde de prefeitos reeleitos, 81%. Em 2023, a Câmara também teve 61% dos mandatos mantidos. Na última década, o Congresso investiu em controlar o orçamento e tomou medidas que dificultam a rastreabilidade dos recursos. O governo foi obrigado a entrar no jogo para se defender das condições impostas pelos congressistas a cada votação importante e, também, para tentar alocar as emendas nos programas com potencial de virar marcas da gestão. Uma batalha, até agora, perdida para os congressistas.
A tentativa do Judiciário - que não disputa eleição - de impor mais transparência às destinações acabou provocando um embate. O ministro Flávio Dino, do STF (Supremo Tribunal Federal), bloqueou o pagamento da parte dos recursos que não atendia os critérios de transparência e rastreabilidade. Desde abril do ano passado, quando Dino começou a se movimentar nesse sentido, houve várias tentativas de driblar as decisões que, mais tarde, foram referendadas pela Corte. A última tentativa ocorreu na semana passada, no Senado, que aprovou, por 65 votos a 1, o projeto PLP 22/2025, que autoriza a quitação de restos a pagar acumulados desde 2019. São R$ 2,6 bilhões em emendas parlamentares que foram canceladas em dezembro de 2024. O projeto é fruto de um acordo amplo, do PL ao PT, costurado com a ajuda do presidente da Casa, Davi Alcolumbre (União-AP). A autoria foi do senador Randolfe Rodrigues (PT-AP) e a relatoria do senador Carlos Portinho (PL-RJ). A escolha dessa dupla já dá o indícios do amplo acordo construído. Na votação do Senado, o único voto contrário ao projeto foi o do senador Eduardo Girão (Novo-CE).
A proposta vai agora para a Câmara, onde contará com a resistência do Novo, com 4 deputados, e do PSOL, com 14. Os dois partidos, no entanto, ainda avaliam se vão questionar judicialmente os termos aprovados no Senado. Dino, segundo interlocutores, só agirá diante dessa questão se for provocado, ou seja, se alguém questionar judicialmente a proposta. Mas ainda é incerta essa provocação. "Politicamente vamos manter a nossa posição contrária à proposta, como foi expressada no Senado. Estamos consultando o nosso jurídico para saber se houve algum ferimento de preceito fundamental", informou o deputado Marcel Van Hatten (Novo-RS) ao PlatôBR. O deputado disse que o caminho judicial não é o mais adequado, mas não descartou a possibilidade. A líder do PSOL, Talíria Petrone (RJ), adiantou que a bancada se posicionará contrariamente ao projeto na votação na Câmara.
O relator da proposta, senador Carlos Portinho (PL-RJ), reconhece a impossibilidade de rastrear a autoria de boa parte das emendas abrangidas pelo projeto, visto que elas foram feitas antes das exigências de Dino. O senador tentou minimizar o problema acrescentando ao texto a ressalva de que os repasses não serão feitos em casos que estão sob investigação. Ele considera não se tratar de um drible, mas uma forma de resolver o problema de muitas obras que estavam paradas devido o bloqueio.
Se for provocado pelo PSOL ou pelo Novo, ou por qualquer entidade com prerrogativa de questionar essas decisões junto à Corte, Dino terá que dar nova reposta, mas ele não decidirá sobre esse assunto "de ofício", ou seja, sem que haja um questionamento.
Até agora, as decisões do ministro foram em resposta a uma ADPF (Arguição de Descumprimento Preceito Fundamental) apresentada pelo PSOL e têm como base a decisão do plenário da Corte, de dezembro de 2022, que vedou as emendas de relator (RP9) e exigiu a publicação de todos os dados referentes a execução dessas emendas. A briga seguiu um percurso que explica bastante a resistência do Congresso em adotar os critérios de transparência.
Em abril no ano passado, Dino pediu aos poderes informações sobre o cumprimento da decisão tomada no final de 2022 pelo Supremo. As informações não chegaram de forma satisfatória e, em junho, após manifestação do Ministério do Planejamento, o ministro identificou o uso de outras dotações orçamentárias, a exemplo da RP8, em substituição à RP9, seguindo as mesmas práticas de ausência de transparência e rastreabilidade já vedadas pelo STF.
Em agosto, Dino determinou que as liberações dos restos a pagar, das emendas de comissões (RP8) e das RP9 só podem ser realizadas com transparência e rastreabilidade. Ele também exigiu que as transferências especiais (emendas pix) somente sejam realizadas com o devido atendimento desses critérios.
Como não houve o atendimento dos requisitos, ainda em agosto, Dino suspendeu a execução de todas as emendas impositivas (transferência especial - pix -, transferência com finalidade definida e bancada) por meio de uma liminar que foi referendada pelo plenário. Em outubro do ano passado, Dino manteve também a suspensão do pagamento de RP9 e RP8.
Puxadinhos
Para o cientista político Jorge Mizael, da Metapolítica Consultoria, além do embate com Dino, há um preceito anterior que precisa ser observado que é o artigo 37 da Constituição Federal, que fala dos princípios que devem reger a administração pública como a legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência dos gastos. "Só que o comportamento do Congresso nos últimos tempos foi criar 'puxadinhos interpretativos' de normas constitucionais para tentar trazer o mínimo de transparência", observou Mizael. "Só que, enquanto esses princípios não forem atendidos em plenitude, as emendas continuarão sendo um problema", destacou o estudioso em entrevista ao PlatôBR. "Nesses 12 anos de orçamento impositivo, ficou provado que as emendas não contemplam esses princípios da administração. Logo, são inconstitucionais ou ilegais", ressaltou.
Linha do tempo
Mizael identifica a linha do tempo das mudanças feitas pelo Congresso no sentido de controlar o Orçamento em um movimento que se iniciou em 2013, quando a impositividade constou pela primeira vez na Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2014. "Foi aí que tudo começou", explicou.
Em 2015, quando já se formava o caldo político para o impeachment da presidente Dilma Rousseff, a impositividade das emendas individuais passou a fazer parte da Constituição, tornando obrigatória a execução orçamentária e financeira desses recursos no projeto de lei orçamentária anual. Na época, o valor das emendas impositivas individuais foi fixado em 1,2% da Receita Corrente Líquida (RCL).
Em 2016, após o impeachment, veio o Teto de Gastos de Michel Temer, impondo um limite para os gastos públicos por 20 anos, restringindo o crescimento das despesas à inflação do ano anterior, e impactando o cálculo do valor destinado às emendas parlamentares. Em 2019, porém outra emenda expandiu o orçamento impositivo ao tornar obrigatória a execução das emendas de bancadas estaduais.
Em 2021 entrou em vigor o mecanismo de “transferência especial” para emendas individuais. Essa nova modalidade permite que parlamentares destinem recursos de suas emendas impositivas a estados e municípios sem a necessidade de especificar a aplicação dos recursos. Em 2022, o percentual das emendas impositivas individuais subiu para 2% da receita líquida, destinando metade do valor para ações na área da saúde. Na época, o STF restringiu esse mecanismo à correção de erros e omissões que pudessem ocorrer no orçamento, impedindo a criação de novas despesas ou programas. A briga se acirrou em 2024 com as cobranças de Dino pelos critérios constitucionais.