Stanislaw Ponte Preta registrou nas páginas de seu Festival de Besteiras que Assolam o País (Febeapá) um diálogo entre dois invisíveis auxiliares de produção de um programa de televisão que foi ao ar, provavelmente, nos idos de fevereiro de 1967. O programa tratara da implementação do Cruzeiro Novo, parte da reforma monetária instituída pelo já mandatário (mas ainda não empossado) Costa e Silva.

Stanislaw verifica o desencontro entre o objeto das análises econômicas e os seres comuns e invisíveis submetidos aos conselhos da velha ciência: “Depois que o senhor Ministro do Planejamento terminou sua palestra pela televisão… falando em aritmética frívola, conjuntura econômica, retração monetária e outros bichos”, sai de cena o Ministro acompanhado de seus cupinchas, entram os invisíveis.

Notou e anotou Stanislaw:

“O mais alto, branco e de bigodinho, muito puxado para o magro, perguntou: — Tu entendeu alguma coisa do que esse cara falou?
E, ante o olhar perdido do outro: — Esse cara que expricô o tal de cruzero novo?
O outro, que era sobre o redondo, crioulo convicto e jeito mais descansado, respondeu:
— No começo eu prestei atenção. Depois num morei mais e pedi meu boné.
— Pois olha, pelo que eu ouvi: quem era rico ficou mais rico; quem era pobre ficou mais pobre!
— Num me diga! — e o crioulo esbugalhou os olhos:
— Você deve de ter entendido mal. Mais pobre do que eu estou eu num guento ficar.” (sic)

Esse episódio nos provoca à ousadia de registrar algumas das impropriedades econômicas que têm assolado nossos tempos.

Invictos na prática do positivismo dogmático e orgulhosos de suas posições de destaque e dos adornos ofertados pela mídia ilustrada, nossos economistas se especializaram no ofício que antes cabia aos profetas, como guardiões das leis que regem o comportamento individual e coletivo dos homens e mulheres invisíveis, existentes no nível atômico, como matérias-primas para os cientistas ocupados no estudo da alocação de recursos escassos, como definiu Paul Samuelson em seus Foundations, uma espécie de catequese para gerações de jovens economistas e que fez muita fama entre nossos exemplares tupiniquins. Gustavo Franco, em sua quase autobiografia intitulada Cartas a um jovem economista, cuida de travar um diálogo imaginário com aspirantes e leigos interessados pela Dismal Science, a tal Economia.

Pedimos licença ao Sr. Franco para utilizarmos seu exercício agostiniano acerca das preocupações dos economistas:

“Nosso assunto é o modo como agem os conjuntos de pessoas quando se trata de decisões que afetam suas condições materiais de existência. O assunto mais nobre – ou, ao menos, o mais popular entre nós, economistas – é o coletivo. Trata-se aqui do comportamento econômico dito social… é a lógica da ação coletiva, ou o comportamento grupal, que revela uma racionalidade própria ao grupo, que, por sua vez, não é apenas a soma de seus indivíduos, mas algo bem maior e, portanto, muito diferente de seus componentes.”

Aqui vale perquirir a consciência dos economistas acerca do que seja o social, conceito excêntrico que perturba sem descanso filósofos e historiadores.

O desconforto com os apetrechos do utilitarismo clássico e abandonados pela doutrina do Laissez-Faire, os profetas da Velha Ciência resistiram à apostasia Keynesiana ocorrida no pós-Guerra e buscaram ultrapassar a simplicidade de seus predecessores clássicos e neoclássicos. Na peregrinação em busca do Graal da Ciência encontraram renovado conforto nas teorias das expectativas (primeiro adaptativas, depois racionais), nos modelos estocásticos dinâmicos de equilíbrio geral e nas pobres incursões pela teoria dos sistemas dinâmicos.

Quando se trata de cuidar do funcionamento da economia como um todo, ou seja, de questões ditas macroeconômicas, os vícios do senso comum e da microcefalia individualista levam a recomendações suicidas de política econômica. Nessa visão apologética, a “agregação” dos comportamentos individuais racionais, a soma das partes determina o resultado para o conjunto da economia. Não por acaso, os economistas da corrente principal empenham-se com denodo na descoberta dos fundamentos microeconômicos da macroeconomia, assim como os alquimistas buscavam a pedra filosofal. Essa proeza intelectual pretende convencer os incautos de que o movimento do “macro” é resultado da agregação das decisões no âmbito “micro”.

Humilhados pelas ousadias de Poincaré, responsável pela prova das limitações analíticas e preditivas do cálculo diferencial, monetaristas, novo-clássicos e tutti quanti, agasalharam seus teoremas com os confortáveis supostos da neutralidade da moeda e da fixação do tempo como propriedade especial dos espaços dinâmicos que, curiosamente, teimam em permanecer estáticos.

As dificuldades em lidar com o demônio do dinheiro e com a incerteza radical, condições de existência da sociabilidade humana, persistem em afastar os economistas da vitória sobre o mundo real.

O social, ou a coletividade, foi acolhido, no âmbito da Economics, pelo gelatinoso conceito de grupo – variável discreta que dispensa a avaliação das subjetividades humanas e que pode ser repartida infinitamente até o nível atômico ou individual -, ou de grupos representativos de indivíduos que compartilham semelhanças e interesses comuns, agindo cooperativamente (ou não). A ação grupal e individual, por certo racional e imprevisível, é guiada pela linguagem comum dos preços, forma impessoal e inexorável de soldagem do comportamento econômico, dito… ou maldito, social.

A metafísica e a epistemologia da corrente dominante ocultam uma ontologia do econômico que postula certa concepção do modo de ser, uma visão da estrutura e das conexões da sociedade mercantil capitalista. Para este paradigma, a sociedade onde se desenvolve a ação econômica é constituída mediante a agregação dos indivíduos, articulados entre si por nexos externos e não necessários.

Os preços participam desse processo social como ratificação de um fato elementar, inescapável aos participantes, como revelação imanente da realidade. Franco, recauchutando o lema do almoço grátis de Friedman, recorre a Machado de Assis para explicar que “não se pode ir à Glória sem pagar o bonde”, lei imposta pela escassez de recursos. Esse ser social, como unidade solitária de uma coletividade, ou parte que solitariamente ativa seu egoísmo cooperativo, recebe a dádiva da liberdade de escolha casualmente restrita pela escassez.

Nas rotinas da boa técnica econômica, o economista se preserva equidistante tanto da política, como das especulações e magias da teoria social. Os dizeres e saberes dos Ciência do Enriquecimento informam a predominância do método e de sua pureza, carregando em sua ontologia peculiar as algemas do naturalismo, do individualismo e do equilíbrio, que atuam no subterrâneo das ideias e ideais, como modo cientifico de justificação política das façanhas do capitalismo.

A posição técnica e equidistante dos economistas constitui, na verdade, um poderoso instrumento de hegemonia política que, por um lado, atua na defesa (e no ataque) em relação aos modos de vida que supõe o ser social como algo além de um produto de escolhas restritas ao equilíbrio de forças entre as necessidades humanas e a distribuição meritória dos recursos existentes e, por outro, conforta os corações dos homens e mulheres despossuídos de sua autonomia que, no “equilíbrio”, é plena e irrestrita para alguns poucos que gozam da abundância, e pouca ou nenhuma para todos os outros algemados aos grilhões da escassez.

As recomendações e análises dos economistas (inclusive as nossas), mesmo quando prestadas em boa fé, estão eivadas de valorações e pressupostos não revelados, para não falar de ostentações de rigor e cientificidade incompatíveis com a natureza do objeto investigado. Esse incidente, o desacordo entre o método de investigação e a natureza do objeto investigado, é quase sempre ignorado pelos praticantes da Ciência Triste. Isso não lança necessariamente dúvida sobre a honestidade intelectual dos economistas, mas os obriga a explicitar as “visões” (como dizia Schumpeter) que antecedem e fundamentam suas análises. Essas cautelas tornam-se ainda mais imperiosas quando as sabedorias dos interesses subjugam os interesses pelo conhecimento.

Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É autor de vários livros, entre eles “Valor e Capitalismo” e “Os Antecedentes da Tormenta”, e ocupou cargos públicos como o de secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e o de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo