Em maio de 2021 a polícia do Rio de Janeiro invadiu a favela do Jacarezinho, na zona norte, com 250 homens, quatro blindados por terra e dois helicópteros fazendo chover rajadas de bala do céu, para combater o tráfico de drogas no morro dominado pelo Comando Vermelho. No final, o saldo do confronto armado entre policiais e criminosos foi de 29 mortos – ou “neutralizadas”, na expressão dos relatórios oficiais.

No dia último dia 28 de outubro a Operação Contenção colocou 2,5 mil homens no complexo do Alemão para prender 100 suspeitos de ligação com o CV e cumprir 145 mandados de busca e apreensão da Justiça. Essa ação terminou com 121 mortos, entre eles quatro policiais.

Mais letais da história do estado, ambas as operações foram deflagradas nas gestões do governador Cláudio Castro (PL). Os dois episódios têm outros pontos em comum: geraram confrontos agravados por mortes de agentes de segurança; ocorreram em anos que antecedem eleições gerais no país; foram exploradas politicamente; estão diretamente ligadas à “ADPF das Favelas”; agradam eleitores de direita e são usadas para desgastar o governo Lula em um assunto incômodo para a esquerda.

Quem faz essa análise acima é o jornalista e escritor Bruno Paes Manso, pesquisador do NEV (Núcleo de Estudos da Violência) da USP, em São Paulo, estudioso do tema violência e segurança pública, autor dos livros Fé e Fuzil (2023) e  A República das Milícias (2020). As obras dissecam uma realidade dos morros fluminenses, dominado por milícias paramilitares, que se expandiram durante o governo Jair Bolsonaro, políticas de incentivo ao estado paralelo, conflitos com o Comando Vermelho e as ações da polícia local.

“A promoção de ordem pela violência tem produzido desordem, tem produzido um efeito negativo que tem contribuído para o caos urbano que gente vive”, diz Paes Manso em entrevista exclusiva ao PlatôBR. 

A seguir, os principais trechos da entrevista:

A operação da polícia no Rio coloca a segurança pública como tema central do debate eleitoral em 2026. Você vê um fundo político-eleitoral que justifique a truculência da ação policial e a defesa enfática feita pelo governador Cláudio Castro?
Aconteceu isso em 2021 e 2022. Uma operação dessa dimensão não se justificava pelo que ela poderia produzir. O Complexo do Alemão tem 200 mil pessoas que moram lá, pensar que são 300, 400 traficantes atuando, no máximo, uma guerra dessa, com uma quantidade de mortos como essa, para pegar 400 pessoas e prejudicar e traumatizar os outros 199 mil moradores, não justifica. O Cláudio Castro é um político inexpressivo, vem de uma candidatura de vice na chapa do “candidato zebra” de 2018, um juiz federal (Wilson Witzel) eleito na primeira disputa da vida. O vice é eleito na onda bolsonarista e, dois anos depois, um processo de impeachment cassa o governador. Castro, esse político inexpressivo, que vem da renovação carismática, cantor de igreja, assume o estado mais complexo do Brasil. E ele percebe, principalmente a partir do caso no Jacarezinho em 2021, que a operação que sai do controle, como saiu essa do complexo do Alemão, e mesmo assim recebe aplausos e é eleito no primeiro turno em 2022. Castro percebe que, politicamente, a violência acaba sendo associada à ordem, acaba sendo associada a trabalho policial. Na eleição de 2026, Castro chega impopular, pela imensa incompetência e incapacidade de gerir o estado do Rio de Janeiro, não consegue nem viabilizar a candidatura dele para o Senado, muito menos emplacar um nome para o governo como sucessor. Aí ele tira do bolso essa operação, que também sai do controle, a partir da morte de policiais, a tropa vai para cima e causa o maior massacre da história brasileira, dentro desse contexto eleitoral, que é fundamental para mim.

O Castro não inventou o bordão eleitoral de “bandido bom é bandido morto”. Esse discurso ainda funciona na eleição?
A gente tem 40, 50 anos de processo de urbanização brasileiro, cidades sendo construídas de forma improvisada, com base em urbanização de favelas e roubos. As pessoas com muito medo começam a apostar na violência como instrumento de produção de ordem. Os brasileiros passam a acreditar nesse papel da violência, como se produzisse obediência, tivesse um efeito pedagógico para ensinar as pessoas a respeitarem a lei. Esse processo tem produzido mais violência, tem saído do controle e produzido uma economia de guerra, com fuzis, combates territoriais, pessoas assumindo a disposição para a guerra. Então, a ideia de promoção de ordem pela violência tem produzido desordem, tem produzido um efeito negativo que tem contribuído para o caos urbano que a gente vive. É um discurso antigo, mas também muito bem usado pela extrema-direita. Junto com isso, eles têm a ideia de que o Estado atrapalha quem quer ganhar dinheiro, os empreendedores. Então, eles querem assumir o Estado para favorecer os negócios dos seus aliados. O estado passa a ser visto como um império dos empreendedores. Então, eles querem chegar no Estado para destruir o Estado e favorecer os negócios, mesmo que esses sejam negócios ilegais e informais, com crimes, como a gente vê acontecer. 

Os corpos enfileirados na comunidade impressionam, mas as pesquisas indicaram aprovação da operação policial pela população local no dia seguinte. Como explicar isso?
Eu tenho reservas em relação a esse dados, pela própria rapidez que foram feitos e pela dificuldade que é fazer pesquisas em comunidade. Então, eu tenho reserva, mas vamos admitir que parte da população, mesmo nas comunidades, apoia esse tipo de operação. Isso não significa necessariamente que o Estado precise agir de forma criminosa, acatar o que a população pede. A população, muitas vezes, está com medo, está acuada. Isso não significa que ela defende o espectro. Como representante do Estado de Direito e das instituições democráticas, você vai sucumbir ao apelo popular e retroceder para barbárie? O que a gente pode ler dessa pesquisa é que as pessoas têm medo, querem solução para os seus problemas, querem se sentir seguras, ver suas comunidades livres da tirania do narcotráfico. Eles vivem nesse dia a dia, que é muito violento, e é muito problemático, realmente, ter que viver sob a tirania de gente que impõe a ordem pelo fuzil, para ficar mais livre. É natural que exista uma revolta, mas isso não significa que a gente tem que descer para a barbárie e tem que agir como se fosse mais uma facção criminosa. O Estado acaba fragilizando as instituições democráticas, acaba fragilizando o Estado de direito. Não significa que a gente tem que agir conforme o clamor da opinião pública, conforme você vai ver muitas vezes nos próprios linchamentos. O papel do Estado é criar essa sensação de segurança e não partir para a barbárie e jogar gasolina nessa fogueira.

No Rio, o combate ao crime é um velho problema. Nos últimos anos, governadores e polícias têm atacado a chamada “ADPF das Favelas”, do STF, como entrave ao enfrentamento às facções como o Comando Vermelho e o domínio de territórios nos morros. O problema está no Supremo e nas leis? 
Eu acho que há muito tempo as polícias, que mandam no Rio de Janeiro e nessa economia de guerra, dão as cartas e tem desafiado as instituições para mostrar quem manda. Em 2018, com a intervenção federal, a milícia matou a [vereadora] Marielle Franco (PSOL). Todos os holofotes estavam voltados para o Rio, a imprensa internacional observando o estado, todos os jornais, e eles vão lá e matam uma vereadora e desafiam o próprio Exército, as Forças Armadas, que estavam lá. Ali eles falam “quem manda no Rio, somos nós e quero ver o que vocês vão fazer com isso”, praticamente. As polícias falam que a “ADPF das Favelas” atrapalhava as operações, sempre colocando a ação como culpada da ineficiência e desse estado de coisas que está no Rio há 30 anos. Sempre desafiando o governo federal, a Justiça, o STF. Na verdade, o que falta, e é urgente, é deixar a emoção de lado, deixar o espírito de guerra de lado, para pensar de forma racional como resolver o problema do Brasil, que é dramático, é trágico, mas isso envolve o compartilhamento de forças. Não apenas as polícias e o Ministério Público, como também o Coaf, Receita Federal, que têm um papel importante nas operações em São Paulo contra o PCC, por exemplo. Porque é preciso saber onde está o dinheiro, onde foi movimentado, quais as contas são usadas, quais são as contas suspeitas, os nomes suspeitos, quais são os peixes grandes que fazem parte dessa rede. A polícia do Rio precisa cortar na carne para transformar o estado de coisas. Quando você começa a desafiar a União, começa a desafiar o STF, porque você está tentando mostrar força, desafiando para ver quem é capaz de tentar interferir nesse estado de coisas, eu acho que são desafios políticos. 

A eleição de 2026 vai ter o assunto violência em alta, está evidente. É bom que a segurança pública e o combate às organizações criminosas fiquem em evidência na disputa eleitoral?
Acho ruim, é um sintoma ruim, porque as pessoas estão com muito medo e a direita sempre consegue se aproveitar disso, a extrema-direita populista, sempre consegue tirar proveito e começa a se conectar com um discurso internacional de guerra. O próprio Donald Trump [presidente dos Estados Unidos] e os combates na Venezuela, a gente não faz ideia de quem são as pessoas que morrem, ele diz que são traficantes, mas a gente precisa acreditar nele, porque não se apresentam provas, não apresentam informações. Isso está se conectando com esse discurso da extrema-direita, sendo que o discurso dessa guerra que a extrema-direita propõe para o Brasil é contra nós mesmos. É uma guerra contra os inimigos internos que não têm uniforme nem nada, são a própria população, que mora em favelas, que tem uma determinada cor, são negros, são pobres, são jovens. Você tem todo o estigma de que são os inimigos. Então, é uma guerra autodestrutiva. É uma declaração de guerra que acaba fragilizando as instituições, a democracia, os laços sociais. Acaba produzindo um retrocesso civilizatório imenso. 

Qual o efeito das operações policiais como a da semana passada contra o Comando Vermelho?
O Comando Vermelho é uma estrutura horizontal, interdependente, mas também com grau de autonomia entre as comunidades muito grande. Cada dono de comunidade tem sua própria independência, apesar de haver uma conexão. Às vezes, em uma ação conjunta para invadir uma comunidade, aliados se juntam de comunidades diferentes, mas de uma forma geral, eles têm a própria contabilidade, agem e têm uma certa independência. São mais de 700 comunidades no Rio de Janeiro, sem falar os 25 estados brasileiros com uma presença crescente do Comando Vermelho. Agir em um elo só dessa rede acaba tendo um impacto muito pequeno, em relação à imensa rede horizontal interligada de apoio e que continua atuando normalmente. Além do que você não teve a ocupação como ocorreu em 2010. No dia 28 de novembro vai fazer 15 anos da ocupação do morro do Alemão, que também foi celebrada como uma vitória do Estado. Na época tinha a UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) e havia um certo otimismo com a polícia pública. Mas alguns dias depois a gente ficou sabendo, pelas investigações do Ministério Público, que houve um acordo da polícia para pegar armas, drogas e dinheiro que sobraram na ocupação para vender e para negociar com outras facções.