A primeira vitória de um filme brasileiro no Oscar, com a estatueta de Melhor Filme Internacional a “Ainda estou aqui”, coloca o cinema brasileiro sob holofotes sem precedentes e levanta dúvidas sobre como alavancar o setor no Brasil para além das ondas de sucesso de produções nacionais no circuito Cannes-Veneza-Berlinale-Bafta-Oscar.
A coluna ouviu os cineastas Jorge Bodanzky e Eliane Caffé, dedicados há décadas ao cinema brasileiro, sobre quais são os principais desafios da área — sobretudo em um mercado que, cada vez mais, tem como protagonistas as plataformas de streaming.
O diagnóstico aponta a necessidade de uma política nacional que oriente as ações da indústria, desde a formação de público até o financiamento dos filmes e a relação com as plataformas e distribuidores, e uma legislação específica sobre o streaming, tema em tramitação no Congresso.
“O desafio do Brasil é criar mecanismos para que o sucesso de um filme não seja um fenômeno isolado, mas, sim, parte de um movimento sustentável”, disse Eliane Caffé, diretora de filmes como “Narradores de Javé” e "Era o Hotel Cambridge”.
Diretor de mais de 20 filmes, entre eles o premiado “Iracema, uma transa amazônica”, de 1974, Bodanzky concorda com a colega. Ele diz não haver uma política audiovisual clara no Brasil e aponta a necessidade de o cinema ser visto como uma indústria que, como tal, deve envolver um projeto a longo prazo como assunto de Estado, não de governo.
“Essa política tem que ser mais ampla, não pode ser uma política de editais somente. Edital é importante, mas não é só o edital. Por exemplo: a legislação sobre o streaming é importantíssima, porque ela traz recursos para o cinema. E está aí rolando no Congresso; não se resolve nada”, disse Bodanzky.
Eliane Caffé também apontou o streaming como crucial para impulsionar o cinema nacional, mas destacou a influência do grande capital sobre as plataformas.
“O audiovisual, cada vez mais, está refém das corporações, tanto no nível de redes sociais quanto de plataformas de streaming, que são, em sua maioria, de domínio da economia privatizada americana. Isso impacta diretamente a forma como as narrativas brasileiras chegam ao público”, apontou.
Um dos projetos de regulamentação das plataformas de vídeo por demanda, já aprovado no Senado e em tramitação na Câmara, prevê regras como a obrigatoriedade de uma contribuição sobre a receita bruta anuas das plataformas e a exigência de cotas mínimas de exibição de conteúdos nacionais. A ideia do texto é ampliar as fontes de financiamento à produção audiovisual nacional e equilibrar a competição entre as plataformas e os serviços de TV por assinatura.
Editais públicos e as produtoras
Eliane Caffé e Jorge Bodanzky também analisaram a configuração do audiovisual brasileiro entre cinema experimental e as demais produções.
Eliane entende que os editais públicos atualmente estão muito voltados para a descentralização e para novos nomes, mas que é preciso incluir cineastas e produtores que já tenham uma longa carreira. Bodanzky defendeu que as políticas públicas contemplem todos os produtores.
“Em vez de aumentar o financiamento para contemplar novos produtores, o que acontece é uma redistribuição sem critério, que pode desestabilizar até mesmo as produtoras mais experientes”, criticou Eliane. “O cinema brasileiro tem filmes excelentes que ninguém viu, que não tiveram a mesma projeção. O que explica esse fenômeno? Não é apenas a qualidade do filme, mas a estrutura financeira e de divulgação que o cerca”, analisou.
Jorge Bodanzky revelou ter a mesma preocupação. Disse o cineasta: “O cinema experimental, o cinema marginal tem que existir, é fundamental, mas ele não sustenta o cinema. Quem sustenta é o sistema comercial, que tem que funcionar, porque a indústria se baseia nele”.
Bodanzky ainda criticou a burocracia que envolve o fomento ao audiovisual. “É uma máquina extremamente burocrática e é asfixiante. Existem até bastante recursos, mas a ineficiência da máquina não permite uma dinâmica para que isso saia rapidamente e resulte em trabalho", disse.
Mais festivais do que filmes
O pesquisador e jornalista Matheus Trunk, autor de "Dossiê Boca: personagens e histórias do cinema paulista", afirmou à coluna que o público de 5 milhões de espectadores de “Ainda estou aqui”, em plena crise econômica, mostrou que o brasileiro não vai ao cinema para assistir somente comédias.
Para Trunk, mais editais estaduais impulsionariam a produção cinematográfica, a exemplo do que fez Pernambuco, revelando o cinema que já tem se destacado em Minas e na Paraíba. “Temos mais festivais do que filmes. O fundamental é garantir financiamento e exibição para nossas produções”, disse o estudioso.
Apesar da concorrência estrangeira, Trunk, que também defendeu a regulamentação dos streamings, acredita no potencial de crescimento do cinema nacional. “Se conseguirmos 18% a 20% do mercado, já será uma grande vitória. O caminho passa por políticas bem estruturadas e melhor distribuição”, estimou.