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Peripécias do dinheiro

No artigo “ O capital está de volta”, Thomas Piketty e Gabriel Zucman revelam a evolução da relação entre riqueza e renda desde o século XVIII. Analisando as oito maiores economias desenvolvidas do mundo, a relação entre a riqueza agregada e a renda saltou de aproximadamente 200% a 300% em 1970 para 400% a 600% atualmente.

A curva que expressa a evolução dessa relação apresenta o formato de “U”, com queda acentuada na participação da riqueza agregada sobre a renda no período que compreende as duas grandes guerras mundiais e a Grande Depressão. A tendência se inverte de forma mais acentuada a partir dos anos 70 do século XX.

Segundo os autores, “as guerras mundiais e as políticas anticapital destruíram uma grande fração do estoque de capital mundial e reduziram o valor de mercado da riqueza privada, o que é improvável ocorrer novamente na era dos mercados desregulados. Em contraposição, se há redução no crescimento da renda nas décadas à frente, então as relações riqueza-renda podem se tornar altas praticamente no mundo todo”.

A riqueza agregada é o estoque de direitos de propriedade e títulos de dívida gerados ao logo de vários ciclos de criação de valor. A renda nacional é o fluxo, investimento, consumo, o próprio valor em movimento. A contraposição e simbiose entre essas formas do valor existe dentro do processo de produção: a busca pela competitividade amplia o emprego de máquinas em detrimento do número de trabalhadores, ao mesmo tempo que depende destes últimos para vender os valores produzidos.

Cada empregador não se confronta com seu trabalhador como produtor frente ao consumidor, logo deseja limitar ao máximo sua despesa com salários, afetando, consequentemente, seu consumo. Ele também deseja que os trabalhadores empregados por outros sejam os maiores consumidores possíveis de sua mercadoria.

Tais movimentos antagônicos são frequentemente associados a momentos de insuficiência de demanda ou superprodução, com desvalorização de ativos. A desvalorização da riqueza é constitutiva do movimento sempre revolucionário de expansão do capitalismo, descrito por Schumpeter como “destruição criadora”.

As políticas anticíclicas da era keynesiana cumpriram o que prometiam ao sustar a recorrência de crises de “desvalorização de ativos”. Mas, ao garantir o valor dos estoques de riqueza já existente, as ações de estabilização ampliaram o papel dos Mercados da Riqueza nas decisões de gasto de empresas, consumidores e governos.

Nos últimos quarenta anos, os Bancos Centrais comemoravam a baixa inflação e as taxas de juros moderadas. A “exuberância irracional” se esgueirou à sombra das ignorâncias para implodir as certezas em 2008. A partir de então, os riscos de ulteriores desvalorizações dos estoques da riqueza já existente transformaram-se na ocupação primordial dos Bancos Centrais.

As injeções de liquidez concebidas para evitar a deflação do valor dos ativos já acumulados incitaram colateralmente a conservação e valorização da riqueza na sua forma mais estéril, abstrata, que, em contraposição à aquisição de máquinas e equipamentos, não carrega qualquer expectativa de geração de novo valor, de emprego de trabalho vivo. O que era uma forma de evitar a destruição da riqueza abstrata provocou o necrosamento do tecido econômico.

Após o quantitative easing a liquidez assegurada pelos Bancos Centrais permanece represada na posse dos controladores da riqueza já acumulada. Os controladores da riqueza líquida hesitam em vertê-la na criação de riqueza nova, com medo de perdê-la nas armadilhas da capacidade sobrante e do desemprego disfarçado nos empregos precários com rendimentos cadentes.

Os Bancos Centrais rebaixam suas taxas de juros para o sub-zero, tentam mobilizar a liquidez empoçada para o crédito e do crédito para a demanda de ativos reais ao longo do tempo. Ainda intoxicados pela metabolização dos ativos ingeridos em seus balanços para salvar o sistema financeiro em 2008, os governos hesitam em estimular a economia pela política fiscal. A despeito das vacilações da austeridade, a relação dívida/PIB cresceu nos Estados Unidos e na Zona do Euro.

O denominador (PIB) cresce pouco, mas o numerador se expandiu rapidamente graças à demanda quase infinitamente elástica de segurança e liquidez. Os preços dos títulos dos Tesouros vão às alturas. O yield dos títulos do tesouro americano com vencimento despencam. Não por acaso, a doutora Janet Yellen faz que vai, mas não vai: teme os efeitos de uma subida da taxa de juros sobre a bolha de ativos. Entre a taça e os lábios, o líquido pode derramar.

Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É autor de vários livros, entre eles “Valor e Capitalismo” e “Os Antecedentes da Tormenta”, e ocupou cargos públicos como o de secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e o de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo

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