Pilar del Río não gosta de ser chamada de esposa, muito menos de viúva, de José Saramago (1922-2010). Além de jornalista, a espanhola é tradutora e presidente da Fundação José Saramago, voltada à cultura, aos direitos humanos e ao meio ambiente. Em entrevista ao Lisboa Connection, programa do canal Amado Mundo, no YouTube, Pilar comparou Donald Trump aos ditadores António Salazar e Francisco Franco, refletiu sobre o medo inoculado pelo neofascismo e criticou políticas anti-imigração.
Ela também classificou o feminismo como “a maior corrente de progresso que há no mundo” e defendeu a criação de uma aliança entre países do Atlântico Sul. A jornalista ainda falou sobre a admiração de Saramago por Jorge Amado, a abertura para um novo amor e, com humor, contou o episódio em que pediu o ator Lázaro Ramos em casamento, em Paraty.
Como você compara Franco, Salazar e Trump?
Os três, Salazar, Franco e Trump, são patéticos. Patéticos, mas distintos. Franco era um homem baixinho, com muitos complexos. Ele governava e tinha uma ambição desmedida porque tinha sido ignorado em decisões importantes. Trump é como um apresentador muito ruim de programa de auditório, aqueles que dão um milhão para quem ganhar. Ele diz uma coisa e o contrário também, não tem dignidade, diz que o Papa está servindo aos comunistas, depois vai lá e faz reverência.
E a política anti-imigração?
O extremismo da ultradireita, neofascista, é fascismo mesmo, de desprezo pelos outros. Isso não era próprio da sociedade, foi induzido, inoculado. A sociedade não detesta o outro. Fizeram com que tenhamos medo.
Como foram os movimentos feministas na transição democrática?
Antes tínhamos que fazer boca a boca as comunicações, pintávamos cartazes e saíamos às ruas. Nos alimentávamos de livros publicados na Inglaterra que entravam clandestinamente no país por meio de uma grande editora no México e uma grande editora na Argentina. O feminismo nós aprendemos no corpo, porque sabíamos que não podíamos viajar sem permissão do marido ou do pai. A primeira vez que fui comprar uma máquina de lavar me perguntaram onde estava a autorização.
Como você vê os retrocessos atuais nos direitos das mulheres?
Em vez de a sociedade estar contente e dizer “que bom, finalmente vamos ter uma mulher na presidência e vamos chamá-la no feminino, finalmente podemos dizer presidenta”… Inocularam, sobretudo na juventude, o medo. “Cuidado, que elas vêm e vão tirar seu poder. Cuidado, vão querer mandar”. Neste momento, o feminismo é a maior corrente de progresso que há no mundo.
Você se sente atacada por movimentos reacionários como esse [Donald Trump]?
Não, atacada não. Agora sei que esse movimento existe. A União Europeia é um continente com história, arte, riqueza e hegemônica à base do dinheiro de outros continentes. Uma sociedade onde as pessoas são mais livres é uma sociedade mais perigosa. Querem destroçar a União Europeia porque a UE levanta a cabeça e diz “não”.
Depois de tantos anos, você se sente portuguesa?
Sou portuguesa de passaporte e pago meus impostos em Portugal, mas não tenho memórias compartilhadas com ninguém, não tenho memória da infância nem da juventude, as memórias que nos fazem sentir ligados à nossa terra.
Qual era a relação de Saramago com Jorge Amado?
Saramago leu Jorge Amado antes de se tornar escritor e dizia: “Por favor, que não corrijam para o português de Portugal, não mudem, não troquem, eu quero ler Jorge Amado como Jorge Amado escreveu”. A primeira vez que o viu pessoalmente na porta de um hotel, em Lisboa, [Jorge Amado] estava conversando com várias pessoas, e Saramago, discreto, passou. Uma pessoa o reconheceu: “Ei, Saramago!”, mas ele ficou envergonhado de interromper a conversa.
Você trouxe um objeto simbólico: por que “Ensaio sobre a cegueira”?
Somos cegos que mesmo vendo, não vemos. Como é possível que diante dos nossos olhos o abismo esteja se desenhando? Compram armas, e depois é preciso usá-las para que não pareça um desperdício, então é preciso gerar um conflito. Se fabricam armas, fabricam conflitos.
Você defende uma aliança no Atlântico Sul. Qual é a proposta?
Quero uma reunião de chefes de Estado de todos os países, desde o Rio Grande, o México para baixo, para fazer a aliança do Atlântico Sul, a bacia cultural e econômica e vizinha do Atlântico Sul. Somos uma força cultural e podemos ser também uma força econômica.
Você já apresentou essa ideia ao presidente Lula?
Olha, não. Mas que boa ideia. Você conhece alguém que possa apresentá-la?
Como foi seu pedido de casamento a Lázaro Ramos?
Naquele ano [em 2017], em Paraty [na Flip], estava sendo homenageado um autor negro, Lima Barreto. De repente, em meio a uma apresentação técnica sobre o autor e o que ele significava na literatura do Brasil, ouvimos do fundo da igreja onde estávamos gritos e um discurso tremendo de um senhor vestido de época, muito bonito, um negro estupendo e maravilhoso. A princípio, não sabíamos se era um protesto ou uma cena — fomos nos dando conta de que era uma cena. Mas foi tão maravilhoso, que me apaixonei. No dia seguinte, me entrevistaram, e a jornalista estava com pressa porque ia entrevistar Lázaro, não queria perder tempo comigo. Então, eu disse: “Estou apaixonada e peço ele em casamento”. Ele respondeu de forma tão divertida! Trocamos uma série de e-mails. Ele disse: “Sou casado, mas podemos pensar em alternativas” (risos).
Você estaria aberta a um novo amor?
Todos os homens que encontro da minha idade estão mortos, aposentados ou cuidando dos netos — o que mais me irrita. Não dá para sair e tomar um vinho porque têm que ficar com o neto. E existe uma coisa chamada babá. Uma vez, em uma feira no México, perguntaram a uma escritora de 97 anos: “E o amor, o que foi para a senhora?”. E ela respondeu: “Como assim, ‘o que foi’? Por que colocam no passado? Ainda estou esperando o grande amor”. Ela nos deu uma lição. Nunca sabemos o que pode nos acontecer, nem mesmo no dia anterior à nossa morte.
Por fim, quem é Pilar del Río?
Sou uma pedra. Uma jornalista. Durante anos fui sombra, mas uma sombra muito ativa. Isso acontece quando há uma pessoa muito conhecida na relação. Outro dia me disseram que a primeira-ministra da Itália se divorciou. E eu disse: claro, o marido não suportou o fato de ela ser primeira-ministra. As mulheres aceitam bem. Já os homens, dificilmente. Eu aceitei com muito orgulho. Se eu fosse apenas uma estudiosa desse escritor, também teria aceitado. Era uma estudiosa — e ainda por cima, tinha o prazer de compartilhar a vida.