Quando o STF virtual se torna ilegal
O Supremo Tribunal Federal, hoje, é um tribunal virtual. Pelos dados disponibilizados pelo próprio tribunal, 99,5% das decisões colegiadas são proferidas em ambiente virtual.
Os julgamentos em ambiente virtual foram ampliados nos últimos anos, especialmente a partir de 2020, momento em que foram equiparadas as competências para julgamento do plenário físico e do plenário virtual. Atualmente, todos os tipos de casos podem ser julgados no ambiente virtual. É o relator que decide se enviará o caso ao plenário presencial ou ao virtual.
Se o processo for enviado para julgamento no plenário presencial, deve-se aguardar a inclusão na pauta pelo presidente do tribunal; se for enviado ao plenário virtual, entra em pauta automaticamente. Uma vez designado ao plenário virtual, um caso somente será julgado no plenário presencial se outros ministros pedirem “destaque” do caso.
Não estão claros os critérios para que um caso seja julgado no plenário físico ou virtual. Mas é possível inferir que os ministros escolhem estrategicamente qual caso será julgado em um ou outro espaço.
No plenário físico, há transmissão ao vivo pela TV justiça, exposição pessoal dos argumentos pelos ministros, confronto de posições, presença dos advogados, das partes e dos movimentos afetados em plenário e na praça dos 3 Poderes. No plenário virtual, não há nada disso.
Por essas e outras razões, os julgamentos no plenário virtual têm sido alvo de diversas críticas, sobretudo pelos prejuízos que podem trazer às partes, que deixam de ter contato síncrono e presencial com os julgadores de suas demandas.
Nessa semana, um dos processos menos indicados ao ambiente virtual foi pautado para julgamento pelo ministro Gilmar Mendes. As ações sobre a inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023, que trata do marco temporal e de critérios para demarcação de terras indígenas, foram agendadas para julgamento a partir do dia 5 de dezembro no plenário virtual.
Após 2 anos de vigência de uma lei que afronta uma decisão do Supremo (em setembro de 2023 o tribunal julgou, por maioria, inconstitucional a tese do marco temporal), o julgamento que pode definir o futuro de todos os povos indígenas no Brasil estaria escondido no sistema virtual do tribunal.
Inúmeras organizações de direitos humanos alertaram os ministros do Supremo para as ilegalidades que viriam de um julgamento virtual. O alerta surtiu efeito e o caso será levado ao plenário presencial, na sessão do dia 10 de dezembro, para oitiva das sustentações orais de todos os envolvidos.
Ainda assim, a ameaça do caso ser escondido no plenário virtual permanece, já que não há decisão definitiva sobre a manutenção de todo o julgamento em plenário presencial. Há boatos de que apenas as sustentações orais seriam feitas presencialmente e o julgamento, onde tudo será decidido, voltará à modalidade virtual. Seria mais um capítulo de uma ação que vem ignorando a autonomia de vontade dos povos indígenas, o processo e a função da jurisdição constitucional.
É importante lembrar que as ações relativas à demarcação de terras indígenas se arrastam por anos, na tentativa de promover uma conciliação sem a presença dos povos indígenas. Agora, vislumbra-se um julgamento igualmente sem a presença dos povos indígenas.
Caso isso aconteça, o julgamento virtual ultrapassaria a barreira da inconveniência para se tornar ilegal. A Constituição, as normas nacionais e as internacionais exigem que as questões que afetam povos indígenas sejam tratadas em sua presença, da forma mais transparente e acessível possível. Isso não ocorre no plenário virtual.
Eloísa Machado é coordenadora do projeto Supremo em Pauta, da Fundação Getúlio Vargas (FGV)
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