Deu tudo errado. A equipe econômica queimou a largada do que era para ser um momento de reaproximação do governo Lula com o mercado financeiro e de aumento da credibilidade da política fiscal, expôs um racha que existe entre o Ministério da Fazenda e o Banco Central e, de quebra, correu o risco de ter que administrar uma baixa na equipe do BC. Por mais que, passada a tensão das últimas 24 horas, os números do corte de R$ 31 bilhões em gastos e os ganhos de receita reestimados para cerca de R$ 18 bilhões possam até prevalecer, ficou a certeza de que a regra vigente entre Fazenda e BC é a do cada um por si. O clima nunca esteve tão ruim desde o início do governo. Desta vez, houve até dirigente da autoridade monetária ameaçando se demitir.

O discurso de unidade e harmonização das políticas monetária e fiscal enfatizado pela equipe da Fazenda durante a entrevista com jornalistas para detalhar as medidas, no fim da tarde da última quinta-feira, 22, ruiu antes mesmo de os técnicos deixarem o auditório na sede do ministério, em Brasília. O presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, só soube da medida que aumentava o IOF nas remessas de fundos de investimento no Brasil para aplicação no exterior após o anúncio para a imprensa – e não gostou. Ele e a equipe do BC sempre foram contrários à mudanças no IOF. O PlatôBR apurou que a insatisfação foi tamanha que um diretor teria verbalizado que seria difícil seguir trabalhando com o governo desse jeito.

A crise se estendeu e foi resolvida, em parte, perto da meia-noite, com o anúncio no perfil oficial do Ministério da Fazenda de que o aumento da taxação para aplicações de fundos no exterior seria retirado do decreto, já publicado àquela altura. Para esta sexta-feira, 23, porém, ficou o mal-estar entre Fazenda e BC. O alinhamento do conteúdo das medidas foi feito no Palácio do Planalto, com os ministros da casa e a equipe econômica. “Com o presidente, só estiveram os ministros. O BC não esteve”, afirmou uma fonte do governo.

O ministro Fernando Haddad (Fazenda) iniciou a sexta-feira tentando, em nova entrevista coletiva com jornalistas antes da abertura do mercado, relativizar o ocorrido e dar, em vão, um ar de normalidade para o bate-cabeças no governo. Mas, ao contrário da mensagem postada nas redes sociais sobre as medidas fiscais em que desmentiu o secretário-executivo Dario Durigan (Fazenda) e esclareceu “que nenhuma delas foi negociada como BC”, desta ve o ministro foi dúbio, insinuando que o texto do decreto em si não teria sido alinhado com o BC, mas o tema, sim.

“Cada um tem um mandato que é exclusivo do governo, de um lado, e do BC autônomo, de outro”, disse sobre a relação entre Fazenda e Banco Central, enfatizando o desacerto como algo natural. “Não revejo decisão do BC e o BC não tem procedimento de repassar as medidas do governo. Há uma troca, um diálogo sobre a economia, a necessidade de corrigir receitas e despesas”, emendou. Na sequência, Haddad destacou que a Fazenda não entrou nas minúcias da redação do decreto, mas que houve conversas sobre o rumo traçado, os objetivos comuns e a harmonização das políticas. O objetivo das medidas da noite anterior seria justamente “harmonizar as políticas monetária e fiscal”.

Imposto regulatório x arrecadatório
Os motivos da discórdia entre Fazenda e BC nesse tema são vários.

Primeiro, o IOF é considerado um imposto regulatório que serve, por exemplo, para influenciar comportamentos de mercado – pode, portanto, regular movimentos indesejáveis e considerados prejudiciais para a economia ou incentivar outros específicos que ajudem na condução da política econômica. Assim, não é propriamente um instrumento para gerar receitas para o governo e financiar os gastos públicos, como acontece com o Imposto de Renda, o ICMS ou o IPTU.

Além disso, o IOF encarece a intermediação financeira, desestimulando, por exemplo, empréstimos e financiamentos que são o principal canal de transmissão da política monetária à disposição do Banco Central. Quanto mais distorções há nesses canais, menores as chances de o BC conseguir efetividade ao elevar ou reduzir a taxa de juros. Já nas transações dos fundos de investimento que aplicam em ativos no exterior, a medida é considerada quase um controle de câmbio, por aumentar o custo das operações, podendo tornar algumas até proibitivas. Em conversas internas no governo, o BC já teria se manifestado contra mudar o IOF. Em reuniões com o mercado financeiro, o próprio governo já havia descartado a possibilidade de mexer nas regras do imposto, justamente pela sensibilidade do tema.

No pacote anunciado nesta quinta-feira, as alterações nas alíquotas do IOF foram apresentadas exatamente como algo que teria uma finalidade arrecadatória. A equipe econômica esperava engordar as receitas com R$ 20,5 bilhões em 2025 e em R$ 41 bilhões no ano que vem. Na manhã desta sexta, o ministro Haddad disse que a retirada da elevação da alíquota para as aplicações de fundos de investimento no exterior reduzirá em cerca de R$ 2 bilhões a projeção este ano e em R$ 4 bilhões, em 2026.

“O valor é residual diante das medidas de mais de R$ 50 bilhões que anunciamos”, disse o ministro, acrescentando que, justamente por isso, foi melhor fazer o ajuste após as críticas do mercado. A crise que se tornou pública, porém, pode ter um custo ainda maior para o governo. A confusão prossegue. Gabriel Galípolo, que tinha viagem marcada, teve que ficar em Brasília. A Secom (Secretaria de Comunicação) da Presidência da República agora corre para tentar, mais uma vez, conter os efeitos da derrapada sobre a já desgastada imagem do governo.