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‘Rei do mundo’: tradutora de Trump analisa por que ele agora está mais ameaçador

Bérengère Viennot, tradutora política e autora do livro ‘A língua de Trump’, analisou para a coluna as mudanças no Trumpspeak

Fotos: Pierre Hybre, MYOP/ David Maxwell, Agência Lusa
Fotos: Pierre Hybre, MYOP/ David Maxwell, Agência Lusa

Donald Trump se alavancou na política em parte porque, como todo populista, criou um estilo que, apesar das crises de elucubrações, soa franco e sincero a quem não tem um nível um pouco maior de profundidade acerca dos temas que ele aborda. Só que Trump 2.0 traz incrementos. Agora, ele tem mais confiança na voz. Hesita menos. Faz menos concessões a quem pensa diferente e mede menos as palavras ao adjetivar oponentes ou ao verbalizar ameaças. A razão por trás da mudança , segundo contou à coluna a francesa Bérengère Viennot, tradutora de textos jornalísticos e autora do livro “A língua de Trump” (2019), está na sensação de que não seu poder não tem mais limites. À repórter Giovanna dos Santos, Viennot resumiu: “Ele sabe que venceu. É o rei do mundo”.

Com 25 anos de experiência na imprensa, entre veículos como Courrier international, Project Syndicate e BuzzFeed, Viennot tem 51 anos e leciona tradução na Paris VII. O livro mistura análises originais e observações hilárias sobre o estilo Trump de falar, com suas repetições de palavras e um léxico embedado em superlativos — em inglês, a tradução foi “Trumpspeak”. Para ela, Donald Trump é um ponto fora da curva e não se encaixa em padrões linguísticos clássicos de políticos, tanto que a forçou a revisar tudo o que sabia do ramo da tradução até a primeira eleição do alaranjado presidente americano, em 2016. Foram alguns tantos anos indo e vindo no hiperbólico discurso trumpista, a ponto de, hoje, ela preferir ter deixado a tarefa de lado. Quase não traduz mais Trump: cansou.

Por que Trump está mais ameaçador em seu discurso?

Desde o primeiro mandato, não acho que Trump tenha mudado muito no geral, mas sua posição está um pouco diferente. No primeiro mandato ele não estava muito certo de si, porque não se sentia realmente pronto. Além disso, não tinha uma boa equipe. Agora ele tem pessoas ao seu redor que o ajudam muito. Acho que está mais ameaçador agora porque sabe que as pessoas o apoiam. Mas seu modo de falar não mudou. O que mudou foi sua confiança. Agora ele sabe que venceu. É o rei do mundo. Então quando ameaça países, acho que é só porque agora ele pode dizer o que quiser. O que pode impedi-lo? Ele é o presidente do país mais poderoso do mundo (risos). 

Ainda assim, muitas das ameaças não vão se materializar. Veja o caso do Panamá, da Groenlândia... A guerra comercial é um pouco diferente. Eu acho que haverá danos, mas, ainda assim, ele faz ameaças porque ninguém o impede. Trump só quer mostrar que ele é o mais forte, o vencedor. Ganhar as eleições de 2024 era questão de vida ou morte..

Obama é um grande orador, melhor que Trump, mas foi sucedido por ele. Por quê?

Assim que Trump foi eleito pela primeira vez, a América ainda estava surfando na onda do Obama. Economicamente, não foi tão ruim quanto o povo pensou que seria. Mas eu acho que as pessoas que o elegeram em 2016 encontraram nele alguém que era exatamente o oposto do que o Obama, e todos os presidentes antes dele, tinham sido. Alguém mais próximo das pessoas, que falava uma língua que eles podiam entender, diferente da linguagem das pessoas que estavam estudando em universidades muito caras. O Obama é, tipicamente, o intelectual das Costas Oeste e Leste americanas, que os progressistas e os liberais da América gostam, que as mídias europeias gostam, mas que não era realmente representativo da América, e sim das duas costas. A América real votou em Trump. Ele sabia como falar com essas pessoas, realmente os confortou com a ideia de que eles eram especiais, diferentes de todos esses intelectuais que só continuavam falando e nunca trabalhavam. 

Ele soar franco e sincero, ainda que minta, ajudou?

Seus apoiadores sentem uma honestidade em sua língua, mas não estou dizendo que essa honestidade seja verdadeira. Na verdade, estou convencida de que não é. Mas é a análise do que as pessoas percebem quando ele fala. Essa imagem de honestidade e sinceridade que ele passa realmente funcionou para ascender ao poder, como podemos ver. Ele sempre diz que a América foi dividida entre os bons e os maus. Trump estaria ao lado dos bons, que estariam sendo enganados pela esquerda. E esse é o tipo de discurso vitimizante que as pessoas adoram ouvir. Além disso, há a motivação pelo ódio. Alguns políticos usam esse ódio para dizer que todos os nossos problemas são por certas pessoas, então, se as neutralizarmos ou as culparmos, vamos nos sentir melhor.

Isso não é a gênese do autoritarismo?

Todos os políticos que fazem isso são autoritários, todos os regimes fascistas fizeram isso. Esse é outro mecanismo da palavra de Trump, cada vez que ele fala, culpa alguém pelo que está acontecendo. Não precisa ser racional, o ponto é que você tem que culpar alguém, e é um alívio saber que nada é sua culpa. Eu acho que ele entendeu isso muito cedo. 

E a Europa?

Quando Trump apareceu como candidato à presidência pela primeira vez, nós (os europeus) rimos muito porque, obviamente, ele era ignorante em muitas coisas. Ele parecia estúpido, então pensávamos “olha esses americanos, o que estão fazendo?”. Então nos ocupamos rindo, mas não víamos o que realmente estava por trás disso: ele era mais inteligente dos que nós pensávamos.

No livro, você diz que a linguagem de Trump a forçou a revisar técnicas de tradução do discurso político. O que precisou ser revisto? 

Quando traduzimos um discurso, sua tradução não será, necessariamente, na mesma estrutura que estava na língua do falante. Pode acontecer de o falante soltar palavras repetidas ou algum erro, coisas que você pode eliminar, porque não afetam a mensagem. 

É isso o que eu fazia até começar a traduzir Trump. Mas quando eu lia o que tinha traduzido, via que não estava tão fiel. Depois percebi que, com Trump, o formato do seu discurso é tão importante quanto a mensagem. Seu jeito de falar é muito simples, vocabulário limitado, e, às vezes, ele diz frases que nunca chegam ao ponto. Se você traduz esses erros fielmente, vão dizer que seu trabalho é ruim. Então nós fazemos com que seja realmente fácil de ler. Mas você não pode fazer isso com Trump, porque, transformar em um texto muito legível, não é Trump, é outra pessoa que está falando. 

É preciso ser muito literal para traduzir Trump, como se você fosse uma criança que está aprendendo uma língua e traduzindo para uma outra, e geralmente não há referências históricas, ele não é muito bom com história ou cultura. Você tem que saber o que está acontecendo na vida dele, porque é disso o que ele fala. Referências pessoais, para as pessoas que ele odeia, e a maioria do tempo ele fala sobre si mesmo.

Você ainda traduz Trump? Ainda é um desafio fazer isso?

Ele ainda é hiperbólico, mas ainda é Trump. Ou seja, a linguagem simples é a mesma. É mais fácil traduzi-lo agora porque você se acostuma ao modo de falar. Mas o tenho traduzido menos e menos. Hoje em dia quase não faço mais. Ainda é um desafio ouvi-lo, é sempre difícil porque é cansativo (risos).

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