Os integralistas marchavam de camisas verdes; os bolsonaristas, de amarelo. De resto, muita coisa é igual: a propaganda massiva, o discurso antipolítico e a promessa de um líder carismático que salvaria o país apoiado por militares. Para Ruy Castro, não há diferença essencial entre o fascismo brasileiro dos anos 1930 e o bolsonarismo recente: “A receita da extrema-direita é sempre a mesma”, disse, na Flip 2025, na Caixa de Histórias — casa do canal Amado Mundo, da Janela Livraria e da editora Mapalab.

Castro lançou este semestre “Trincheira tropical”, livro que recompõe a vida carioca no período da Segunda Guerra Mundial e mostra como aquele Brasil foi moldado pela guerra global — dos navios afundados por submarinos alemães às disputas de influência entre Alemanha e Estados Unidos.

Autor de clássicos como “Chega de saudade”, “Anjo pornográfico” e “Estrela solitária”, Castro considera “Trincheira tropical” seu melhor livro, ao misturar memórias, histórias inéditas e paralelos incômodos com o Brasil contemporâneo. Na entrevista, falou sobre personagens célebres, como Vinicius de Moraes, descreveu o fascínio integralista, e analisou a disputa de influência entre Alemanha e Estados Unidos e a permanência de traços autoritários em nossa política. A seguir, os principais trechos da conversa. Assista à íntegra no vídeo ao fim desta reportagem.

Você disse que levou seis anos para concluir “Trincheira tropical”. Nesse período, publicou outros livros. Trabalha em vários projetos ao mesmo tempo?

Não, vai ser o seguinte. Eu tinha acabado de lançar, estava terminando “Metrópole à beira-mar”, que é a história do Rio moderno dos anos 20, quando me ocorreu fazer um livro sobre a Segunda Guerra Mundial no Rio. Essa história nunca tinha sido contada. Eu não tinha um livro como referência sobre esse assunto para me basear e procurar outras coisas. Não tinha nada. Você tem muitos livros sobre o Brasil na Segunda Guerra, mas não sobre a Segunda Guerra no Brasil, muito menos no Rio. Sobre a colonização alemã no Sul do Brasil existem vários; sobre a migração japonesa e italiana em São Paulo, também; sobre as bases americanas no Nordeste, alguns. Mas nada sobre o Rio, capital federal, única metrópole do país, centro cultural, diplomático e militar. Então pensei: se não tenho bibliografia, vou atrás de tudo o que foi escrito entre 1935 e 1945 que possa trazer alguma informação sobre o Rio nesse período. Li memórias de embaixadores, militares, políticos, escritores, donas de casa, comerciantes. Passei anos comprando livros em sebos e leilões, inclusive de pracinhas que escreveram relatos quase clandestinos nos anos 40. Às vezes, lia 400 páginas para extrair um parágrafo. Fiz uma bibliografia enorme, e só depois que não faltava mais nada para apurar, comecei a escrever. Esse processo levou seis anos de pesquisa, mas a redação, em si, um ano e quatro meses.

No livro, você revisita personagens que já apareceram em outras obras suas. Alguém ganhou um novo tratamento?

Veja bem, esses livros de reconstrução histórica desenvolvem 100 ou 200 personagens principais. Ao contrário de uma biografia, que tem um protagonista, aqui a cidade e a época são os protagonistas, e as pessoas entram e saem da história. Alguns personagens que já tratei em outros livros reaparecem. O caso mais evidente é Vinicius de Moraes. Em “Chega de saudade”, ele é um dos inventores da Bossa Nova; em “Ela é carioca”, aparece como figura fundamental de Ipanema. Mas em “Trincheira tropical” ele surge como integralista, chefe de milícia, católico fanático. Era um místico que acreditava que se devia tomar o poder pela força. Você vê fotos dele nos anos 30, forte, musculoso, porque era líder de uma milícia integralista no Rio, participava de passeatas. É um Vinicius muito diferente. Só que, em 1942, Oswaldo Aranha o encarregou de acompanhar Waldo Frank, escritor americano de esquerda, pelo Brasil. Nessa viagem, Vinicius, que não conhecia o Brasil, conheceu a miséria do país. Frank fez a cabeça dele, e Vinicius voltou mudado, quase de esquerda. Então, nesse livro, ele aparece em transformação, o que não aparece nos anteriores. Outros, como Miguel Reale, Dom Helder Câmara e Alceu Amoroso Lima, também mudaram de posição décadas depois, mas no período que eu trato, eram integralistas, apoiadores da ditadura Vargas. Eu não faço futurologia: retrato o que eles eram naquele momento.

Ao falar do integralismo, você traça paralelos com o bolsonarismo. Que semelhanças enxerga?

Os integralistas usavam camisa verde, os bolsonaristas usavam camisa amarela, mas é a mesma coisa. A receita da extrema-direita é sempre a mesma: você primeiro tenta destruir a política, desmoralizar os políticos, dizer que só há corrupção. E quem diz isso são políticos. Em seguida, você ergue um líder carismático, quase como um deus, apoiado em militares. O integralismo era o fascismo brasileiro, ligado ao fascismo da Itália e ao nazismo da Alemanha. Eles tinham um poder de propaganda gigantesco, publicações, jornais, livros, passeatas. Cada integralista tinha obrigação de converter dez outros, e em pouco tempo chegaram a um milhão de adeptos. Há uma foto no livro que mostra uma avenida inteira tomada por camisas verdes marchando. Mulheres e crianças também se uniformizavam. Se tivessem tomado o poder, o Brasil seria outro. Essa lógica é a mesma do bolsonarismo, ou do fascismo europeu nos anos 30.

Plínio Salgado, líder integralista, aparece com força em seu livro. Por que ele foi tão influente e por que pouco se fala dele hoje?

Plínio era magrinho, frágil, parecia de pijama. Mas no palanque, com o microfone, virava um agitador de massas. Tinha um poder de persuasão verbal terrível. O integralismo era profundamente antissemita. Alguns tentam livrar Miguel Reale e o próprio Plínio, mas basta ler seus livros — e eu tenho as primeiras edições — para ver o antissemitismo ali. Eles publicaram mais de cem livros em quatro ou cinco anos. Existem bons estudos sobre integralismo, mas poucos deram a dimensão real do fenômeno. Eu li jornais, revistas, literatura integralista quase inteira para entender essa vastidão.

Você mostra a disputa entre Alemanha e Estados Unidos pela influência no Brasil. Como isso se deu?

O Brasil era muito mais estratégico do que se pensa. A Alemanha via o Sul, com sua população alemã, como uma base potencial, quase uma “Alemanha tropical”. Eram comunidades que falavam alemão, estudavam em escolas alemãs, cantavam hinos alemães, e eram reconhecidas como alemãs pela Alemanha. Muitos generais brasileiros eram germanófilos, como Dutra e Góis Monteiro. Vargas flertava com ambos os lados, mas em 1942 percebeu que a Alemanha perderia e se alinhou aos EUA. O afundamento de 34 navios mercantes brasileiros por submarinos alemães causou comoção nacional. Milhares foram às ruas, até a UNE, para exigir a entrada na guerra. Foi um ponto de virada: a guerra externa contribuiu para enfraquecer a ditadura interna. E é curioso como isso nunca tinha sido contado em profundidade.

Seu livro revela também a rede de espionagem nazista no Rio. Que dimensão isso tinha?

Gigantesca. Havia dezenas de espiões alemães no Rio, muitos já residentes há décadas. Eles alugavam salas no centro para observar navios no porto, e casas em bairros como Ipanema e Leblon, então pouco povoados, para instalar antenas e transmitir mensagens à Alemanha. Quando o Brasil declarou guerra, essa rede foi desbaratada. Descobriram rádios escondidos, antenas, códigos. Muitos foram presos e condenados a 30 anos na Ilha Grande. Um deles, [Curt] Meyer-Clason, depois virou tradutor de Guimarães Rosa. Veja a ironia: é lembrado como tradutor, mas era um espião nazista condenado. Isso mostra como a guerra atravessava a vida cotidiana do Rio.

Você escreveu que mergulhar no passado ajuda a entender o presente. De que forma?

Porque os padrões se repetem. O DIP de Vargas funcionava como os sistemas de censura de Itália e Alemanha. Controlava a imprensa, cortava a cota de papel dos jornais, distribuía retratos de Vargas já emoldurados para repartições, empresas, escolas. Criou o “Getulinho”, moeda de 10 centavos com a efígie de Vargas. Até maços de cigarro traziam a cara dele. Era uma ditadura com culto à personalidade, censura e propaganda. Décadas depois, ainda existe quem o veja como benfeitor, por causa da CLT. Mas era um torturador e assassino, como qualquer ditador. Revisitar esse passado mostra como funcionam esses mecanismos, ainda hoje reconhecíveis.

O Rio, tema recorrente em seus livros, sempre é chamado de “Cidade Maravilhosa do passado”. Esse ciclo se repete?

O Rio está “acabando” há 500 anos. Sempre se diz que 30 anos atrás era melhor. Mas cada época tem suas qualidades e problemas. Os jovens de hoje lotam praias, bares, boates, como sempre. Outras cidades também mudam. São Paulo dos anos 80 era uma roça comparada a hoje. Nova York dos anos 40 tinha dezenas de casas noturnas em uma só rua; hoje, nenhuma. Mas não fica chorando o passado, segue em frente. O problema é querer que a cidade seja museu. Eu moro no Leblon, num prédio de 1959, que substituiu uma casa onde nasceu Danilo Caymmi. Para ele, o bom era antes; para mim, é agora. O importante é restaurar o que tem valor, preservar o que pode ser preservado e permitir que a vida urbana se transforme.