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Lula, Getúlio e a oposição

No fim de 1951, seu primeiro ano como presidente eleito, Getúlio Vargas (PTB) enviou um bilhete a Lourival Fontes, chefe do Gabinete Civil da Presidência da República: “Fale ao Café Filho ou se for preciso ao próprio [Lucas] Garcez (governador de São Paulo, 1951-1955), dizendo que a bancada do PSP (Partido Social Progressista) na Câmara está fazendo obstinação ao projeto sobre a Fundação da Casa Popular, apoiando emendas do deputado [Aliomar] Baleeiro (UDN). É preciso providenciar junto ao deputado Paulo Lauro, líder do PSP na Câmara”.

Vargas estava certo em se irritar. Vencera as eleições presidenciais de 1950 com apoio do PSP, controlado pelo governador de São Paulo Adhemar de Barros, sucedido por Lucas Garcez. A bancada do PSP hesitava no apoio a Vargas, embora o partido tivesse o Ministério da Viação e Obras Públicas, que só rivalizava com o Ministério da Guerra em peso orçamentário.

A UDN de Baleeiro também tinha ministério maiúsculo, o da Agricultura, comandado por João Cleofas, político pernambucano que arriscara apoiar a volta de Vargas em 1950. A UDN considerava Cleofas um traidor e, como ministro, uma escolha pessoal do presidente.

Assim como Getúlio Vargas em seu tempo, Lula (PT) enfrenta desafios em 2024 ao lidar com um gabinete ministerial composto por figuras de diferentes partidos. Alguns ministros, como Juscelino Filho (União Brasil) e Simone Tebet (MDB), não são vistos como representantes fidedignos das bancadas de seus respectivos partidos, o que dificulta a garantia de apoio consistente ao governo no Legislativo. Isso é particularmente evidente no caso do União Brasil, partido que, mesmo ocupando três ministérios, demonstra baixa adesão às orientações de voto do governo.

Para o cientista político Octavio Amorim Neto presidentes em sistemas multipartidários como o brasileiro recorrem a duas estratégias principais para governar. A mais comum é a coalizão, com a formação de um governo baseado na filiação partidária dos ministros e em acordos formais entre o presidente e os partidos. A segunda, a cooptação, também se utiliza do critério partidário na escolha de ministros, mas dispensa acordos formais. Em ambas as estratégias, a necessidade de atrair apoio político é evidente.

Embora a distribuição de ministérios entre partidos políticos seja prática comum, as estratégias presidenciais para garantir governabilidade variam. Tanto Vargas quanto Lula lideraram partidos com representação limitada na Câmara dos Deputados. O PT de Lula, por exemplo, elegeu apenas 68 dos 513 deputados (13%), enquanto o PTB de Vargas obteve 51 dos 304 assentos (17%).

Apesar da reputação de negociador habilidoso, Lula enfrenta dificuldades em consolidar uma maioria parlamentar fiel, mesmo com um gabinete de 39 ministérios (Vargas tinha 11!). Diante de um Congresso Nacional mais assertivo do que em 2003, o governo Lula já sofreu derrotas expressivas.

Um exemplo emblemático foi a aprovação do projeto de lei 709/2023 na Câmara dos Deputados em maio. Proposto por Marcos Pollon (PL), o projeto previa a suspensão de benefícios assistenciais federais para indivíduos que invadirem propriedades rurais ou urbanas.

A falta de articulação do governo, em conjunto com a forte oposição da bancada conservadora bolsonarista, culminou em humilhação na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJC), a mais importante da Câmara dos Deputados, e posteriormente no plenário.

A base governista iniciou sua tentativa de barrar o projeto na CCJC com um requerimento para retirar a matéria da pauta de votação. Mas ele foi rejeitado por 42 votos a 17, com a maioria dos partidos – incluindo União Brasil, MDB, PSD, Republicanos e PDT – votando contra.

Na sequência, Patrus Ananias (PT) tentou adiar a votação, mas o pedido também foi rejeitado por 38 votos a 2, com doze obstruções – uma tática comum da oposição para atrasar deliberações. A insistência na obstrução, com a abstenção de 10 parlamentares da federação PT-PCdoB-PV, mostra como o governo de utilizar as mesmas ferramentas regimentais da oposição para obstruir o projeto. Apesar disso, a manobra não teve sucesso: o parecer favorável à proposta foi aprovado por 38 votos a 8, com três abstenções.

O PT manteve, no plenário, a estratégia de utilizar ferramentas regimentais típicas da oposição. O requerimento para retirar o projeto da pauta, apresentado por Odair Cunha (PT), foi rejeitado por 327 votos a 124. Alguns partidos da base desconsideraram a orientação de voto e apoiaram a proposta da oposição. As tentativas posteriores de adiar a votação e apresentar destaques para modificar o texto do projeto também foram rejeitadas por amplas maiorias.

A aprovação do requerimento para encerrar a discussão, por 313 votos a 120, consolidou a derrota do governo e a força da oposição, que conseguiu aprovar sem as modificações defendidas pelo PT e seus aliados.

Em 1950, Vargas enfrentava também a oposição que utilizava bem o Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Segundo um cronista da época, “a ação oposicionista e o combate sistemático ao governo, a luta sem tréguas, fica a cargo de dois ou três deputados, com o sr. Baleeiro à frente, os quais, na hora do frigir dos ovos, declaram inocentemente que não falam em nome da UDN, mas em nome pessoal”.

Menos hipócrita, o então presidente da Fundação da Casa Popular, Cid Rache, admitia: “Não temos adotado critérios rígidos para a escolha do local e dos beneficiários. Por sinal, uma das normas que adotamos em nossos trabalhos é justamente a de evitar a adoção de critérios rígidos”.

Mês passado, Lula falou sobre o mesmo assunto: "Nós agora tomamos a decisão de todas as terras públicas, prédios públicos, sabe, que nós temos, nós vamos distribuir para que se faça o Minha Casa Minha Vida, para que se faça alguma coisa. O único patrimônio que o Estado tem que ter é um patrimônio do chamado povo brasileiro, que é o grande patrimônio da sociedade."

O discurso está fundamentado no decreto que criou, em fevereiro, o Programa de Democratização de Imóveis da União, com o objetivo de destinar imóveis não utilizados pelo governo federal para habitação de interesse social. Mas a ineficiência do governo para fazer isso é imensa. O Plano Nacional de Avaliação de Imóveis 2024-2026, da Superintendência do Patrimônio da União, identificou aproximadamente 9.000 imóveis com potencial para serem destinados a programas como o Minha Casa Minha Vida. Em pouco mais de sete meses, apenas 45 imóveis entraram no programa.

Como se vê, Vargas e Lula têm em comum uma política de habitação meio improvisada e uma certa impotência face ao Legislativo.

Em 1953, Vargas deu mais três ministérios para a UDN. De nada adiantou. Aliomar Baleeiro, que nem quis reconhecer a eleição de Vargas em 1950, ganhava espaço para representar a oposição, atraindo até uma parte da coalizão governista, como Vargas reclamou no bilhete. E pouco mais de um ano depois, o atentado na Rua Tonelero mudou a história.

Aliomar Baleeiro foi nomeado ao STF em 1965 por Castello Branco. Voltou-se contra o autoritarismo do AI-5, mas não foi cassado. Com o suicídio de Vargas, escapou da máxima atribuída à família riograndense: os Vargas esquecem, mas não perdoam.

Sérgio Praça é professor e pesquisador da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV CPDOC). Doutor em Ciência Política pela USP, é autor de “Guerra à Corrupção: Lições da Lava Jato” e “Corrupção e Reforma Orçamentária no Brasil”

 

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