O STF (Supremo Tribunal Federal) deu o primeiro passo rumo à punição de agentes públicos que cometeram crimes na ditadura militar em fevereiro, quando decidiu que vai julgar se o crime de ocultação de cadáver pode ser incluído na Lei da Anistia. Na semana passada, o TRF (Tribunal Regional Federal) da 3ª Região foi mais longe: entendeu que não existe perdão para esse tipo de crime.
A Quarta Seção do TRF-3 afirmou que, por ser crime de natureza permanente, a ocultação de cadáver não pode ser anistiada nem atingida pela prescrição. Isso porque, quando o corpo não aparece, o crime continua sendo cometido até hoje. Portanto, não poderia ser perdoado por uma lei editada em 1979.
O STF deve tomar essa decisão em breve, conforme a tendência observada nos bastidores da Corte. Enquanto isso, não há empecilho para tribunais de todo o país avançarem na discussão e reabrirem casos contra agentes da ditadura encerrados ou aguardando decisão.
O caso examinado pelo TRF-3 é sobre o ex-médico legista José Manella Netto, acusado de forjar o laudo necroscópico do militante político Carlos Roberto Zanirato, morto em 29 de junho de 1969, quando estava sob custódia de agentes da repressão. O militante foi empurrado contra um ônibus na Zona Leste de São Paulo. O laudo omitiu que a vítima foi submetida a sessões de tortura e afirma que a morte foi causada por suicídio. O corpo do militante jamais foi localizado. A suspeita é que tenha sido enterrado como indigente.
Manella Netto foi denunciado pelo Ministério Público, mas o processo estava parado, por conta do entendimento firmado pelo STF em 2010 segundo o qual os crimes cometidos por militantes e agentes do Estado não poderiam ser punidos, por força da Lei da Anistia. Agora, o médico e outros agentes da ditadura militar podem ter outro destino.
Repercussão geral
Enquanto o filme “Ainda estou aqui” chamava a atenção da comunidade internacional para a ditadura vivida no Brasil, o STF começou a ensaiar um caminho para punir agentes do Estado que cometeram crimes no período. Em fevereiro, o tribunal decidiu que vai discutir se crimes permanentes são alcançados pela Lei da Anistia.
O resultado do julgamento do Supremo terá repercussão geral - ou seja, precisará ser adotado por tribunais de todo o país no julgamento de processos sobre o tema. A análise da tese ainda não foi agendada.
No STF, vários processos sobre o assunto aguardam julgamento. Após a decisão de 2010, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) apresentou um recurso em que pede para a Lei da Anistia não abarcar crimes de caráter continuado. Em 2014, o PSOL ajuizou uma ação no mesmo sentido.
A tese deve ser julgada em conjunto com casos concretos - entre eles, o processo contra Lício Augusto Ribeiro Maciel e Sebastião Curió Rodrigues de Moura, que morreu em 2022, ambos tenentes-coronéis do Exército que atuaram na Guerrilha do Araguaia, por crimes cometidos em 1973.
Também no mês passado, o STF reabriu a discussão em torno do processo sobre o assassinato de Rubens Paiva. Em 2021, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) suspendeu a ação por conta do impedimento imposto pela Lei da Anistia para processar criminosos da ditadura. O Supremo decidiu que vai rediscutir o caso, para definir se vai ser reaberto ou não.
Outros processos
O STF fez o mesmo sobre outros dois processos. Um deles, é uma denúncia contra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra e os delegados Dirceu Gavina e Aparecido Laertes Calandra pela prisão, tortura e assassinato, em 1972, de Carlos Nicolau Danielli, militante sindical e dirigente do PCdoB (Partido Comunista do Brasil).
O tribunal também concordou em rediscutir o destino de cinco policiais e médicos legistas pela morte, em 1971, do operário e militante Joaquim Alencar Seixas. Também em fevereiro, o STF tomou uma decisão emblemática sobre crimes cometidos na ditadura: devolveu a condição de anistiados a 300 cabos da Aeronáutica que foram afastados pelo regime militar. A anistia ao grupo tinha sido cassada no governo de Jair Bolsonaro.
O afastamento dos militares foi determinado por uma portaria de 1964. Os cabos foram perdoados e receberam indenizações financeiras por atos da Comissão de Anistia entre 2002 e 2005. Em 2020, a hoje senadora Damares Alves (Republicanos-DF), que era ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, cancelou a anistia ao grupo em um processo administrativo.
A decisão do STF restituiu o benefício ao grupo. Agora, a tendência é que o caso avance rumo ao entendimento firmado pelo TRF-3, com o objetivo de punir agendas da ditadura.