Soberania Digital no Brasil: um projeto estratégico para a próxima década
Não se pode mais falar em soberania nacional sem pensar a soberania digital como um de seus eixos centrais. Na atual fase do capitalismo, os dados – e o ecossistema responsável pela sua coleta e processamento – se transformaram num importante ativo econômico e de controle geopolítico.
A geopolítica do século XXI, historicamente centrada em fluxo comercial e ações militares entre estados nacionais, fincou bandeira em outro campo. De dez anos para cá, é impossível falar de soberania nacional sem considerar estrategicamente camadas invisíveis das disputas entre países. Falo de algoritmos, semicondutores, computação em nuvem e dados. A chamada “nova geopolítica da agenda digital” não é apenas disputa por mercados, territórios e recursos naturais. É uma queda de braço entre nações e corporações supranacionais e extraterritoriais – as empresas de tecnologia dos Estados Unidos e da China — que dominam nosso cotidiano e desafiam nossos projetos nacionais. Essa nova realidade exige que os países garantam autonomia para decidir quem controla infraestruturas críticas, define padrões e arbitra o tráfego de dados da economia digital.
Para o Brasil, país continental e fornecedor de relevância global em alimentos, energia sustentável e biodiversidade, a questão é estratégica: ou a inserção digital vira poder soberano, ou manteremos papel periférico e subalterno em uma realidade cada vez mais dirigida por plataformas de serviços digitais. Dentro deste contexto, o Brasil precisa decidir também como se posicionará na “guerra fria azul” travada entre Estados Unidos e China em torno da inteligência artificial e dos semicondutores.
O episódio das tarifas impostas pelo governo de Donald Trump a quase todos os países expôs como os impérios agem: sanções, controles de exportação e barreiras técnicas foram usadas não só contra rivais históricos, mas também para disciplinar aliados. O recado claro passa pela constatação de que a dependência tecnológica se transformou em uma arma avançada de hegemonia. Quando a computação de alto desempenho, serviços de nuvem e semicondutores se tornam instrumentos de pressão, o debate sobre soberania digital deixa de ser retórico. Ele passa a significar capacidade de continuar operando — governos, finanças, pesquisa, defesa e até a democracia — mesmo diante de choques políticos externos. Como se sabe, o interesse das chamadas big techs no mercado brasileiro de plataformas e de sistemas eletrônicos de pagamento veio à mesa em diversos momentos das negociações desde julho e continua sendo um dos objetivos de Trump com suas medidas.
Big techs, segurança e política industrial
Os seis maiores conglomerados de economia digital deixaram de ser apenas empresas. São infraestruturas digitais privadas com funções quase estatais. Em crises globais, decidem sobre visibilidade de conteúdo, continuidade de serviços e parâmetros de segurança. Em guerras, seus data centers e seus satélites civis ganham relevância militar. Na economia, direcionam P&D global e garantem superávits na balança comercial. Isso pede relacionamento público-privado de alto nível, quase uma diplomacia digital, com regras claras: dados protegidos, competição leal e contrapartidas industriais para o uso intensivo de recursos locais (território, dados, talentos e benefícios fiscais).
Não se trata de uma oposição automática às big techs, mas da construção de uma política de defesa da nossa soberania digital. Onde houver interesse público estruturante, devem existir cláusulas de desempenho e controle de ativos, conteúdo local e transferência de conhecimento. Por isso, política industrial, segurança e infraestrutura precisam andar juntas: sem base material — energia estável, conectividade robusta, data centers eficientes, segurança cibernética e cadeia local de hardware —, a soberania digital vira só slogan.
Países da Europa e de outros continentes perceberam, talvez tardiamente, que a preocupação exclusiva com regulação das plataformas levou a uma dependência quase irreversível das empresas estrangeiras. Agora, estão correndo atrás do prejuízo pela falta de uma política industrial que dê conta da garantia da soberania digital. Nosso governo precisa adotar medidas urgentes para não enveredar pelo mesmo caminho. A Agenda Brasil Digital, enviada ao Congresso Nacional recentemente pelo Governo Lula, foi um ótimo começo. O pacote traz medidas tanto regulatórias quanto de fomento ao ecossistema digital brasileiro.
Uma agenda digital para o Brasil
Precisamos avançar para uma pauta mais ampla que sustente nossa autonomia tecnológica e econômica no médio prazo. E temos que tomar cuidado com as armadilhas. Entre o pragmatismo das entregas e o entreguismo, há muito a se construir. Principalmente, temos que observar claramente que o uso do poder de compra do Estado e mesmo eventuais contratos com big techs estruturados com o devido cuidado são um instrumento fundamental para impulsionar esta agenda de forma soberana.
No entanto, notícias dão conta de que não é isso o que vem ocorrendo. A falta de coordenação está ampliando nossa situação de dependência que pode demorar anos para ser superada. Recentemente veio a público a informação de que o Gabinete de Segurança Institucional – GSI pretende firmar um acordo de cooperação técnica com a Amazon Web Services, a megaempresa de serviços de nuvem da Amazon. Em seguida, o mesmo GSI publicou instrução normativa que autoriza a hospedagem de dados classificados em grau de sigilo reservado ou secreto em nuvens de empresas privadas. A instrução que vigorava antes, de 2021, proibia o tratamento de informações secretas em ambientes de nuvem. Trata-se de uma decisão absolutamente controversa, que exige debate público e transparente.
Sabemos da preocupação do governo Lula com o tema. Estão sendo adotadas medidas para repatriar, num horizonte de tempo relativamente curto, dados estratégicos brasileiros que estão alojados em data centers no exterior. Mas não basta só localizar esses dados em infraestruturas digitais no Brasil. Dados estratégicos têm que ser localizados no país em centro de dados controlados pelo Estado, pois há, por exemplo, legislações, como o Cloud Act dos Estados Unidos, que têm que ser cumpridas por empresas daquele país, mesmo operando em território estrangeiro. Daí a necessidade de escrutinar publicamente essa anunciada decisão do GSI. Temos que ter um plano claro de médio e longo prazo para reduzir nossa dependência digital. Nesse intervalo, não podemos, em hipótese nenhuma, ampliá-la em algumas frentes ou abrir novas brechas para o avanço das big techs.
É mais que sabido que o desenho regulatório e os contratos de longo prazo sobre ativos digitais estratégicos moldam trajetórias nacionais de décadas. A economia de dados, por exemplo, pode reproduzir assimetrias históricas. O fato de coletarmos aqui e processarmos lá fora 60% das nossas informações nos lega serviços condicionados por condições unilaterais. É o colonialismo de dados: extração massiva de informação comportamental, científica e produtiva, seguida de cercamento algorítmico, termos de uso abusivos e patentes que bloqueiam recombinação local.
Na frente externa, também temos um desafio importante que pode ajudar a reduzir as assimetrias entre os estados nacionais. A internet nasceu policêntrica, mas sua governança se fragmentou entre fóruns de padronização, acordos comerciais, regimes de controle e normas de segurança. Para o Brasil — potência média com vocação de ponte — faz sentido liderar uma agenda do Sul Global que some autonomia com governança multilateral.
O fio que alinhava tudo nos mostra que a soberania digital real é a capacidade de escolher caminhos tecnológicos e econômicos conforme o interesse nacional — e de sustentar essas escolhas diante de pressões externas. Isso não se alcança com retórica nem com protecionismo vazio, mas com infraestrutura tangível, indústria competitiva, governança de dados robusta, regulação inteligente e diplomacia técnica. O Brasil tem escala, talento e mercado para liderar uma agenda digital para o Sul Global na próxima década, o que passa por reeleger Lula presidente em 2026. Falta consolidar uma estratégia de Estado, de longo prazo, que transforme nossa condição de grande usuário de plataformas em coprodutor de tecnologia, reduzindo dependências críticas e convertendo dados, infraestrutura e cadeias produtivas em valor, poder e bem-estar.
José Dirceu é um político brasileiro, advogado, consultor e militante de esquerda com uma longa trajetória no cenário político do país. Autor de três livros – Abaixo a Ditadura (1998), Tempos de Planície (2011) e Zé Dirceu – Memórias volume 1. Iniciou sua militância política durante os anos de ditadura militar no Brasil, engajando-se no movimento estudantil, do qual foi líder entre 1965 e 1968. Foi deputado estadual por São Paulo, exerceu três mandatos de deputado federal, e ministro-chefe da Casa Civil durante o primeiro Governo Lula, em 2003. Foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, seu secretário-geral e presidente por quatro mandatos
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