A democracia mostrou os dentes. E morde. Esta é a visão do sociólogo Celso Rocha de Barros sobre o julgamento do STF que condenou Jair Bolsonaro a 27 anos e três meses de prisão por tentar dar um golpe de Estado. Em meio a discussões por anistia e pressões de Donald Trump, no entanto, Barros entende que, apesar da expressiva vitória, a luta contra o golpismo ainda não está ganha.
Em entrevista à coluna, o sociólogo classificou o voto do ministro Luiz Fux, que absolveu Bolsonaro de todos os crimes a ele imputados pela PGR, como “jurídica, moral e intelectualmente indigente”. Autor de “PT, uma história”, o sociólogo também falou sobre Tarcísio de Freitas, Eduardo Bolsonaro e os caminhos das eleições de 2026.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

Celso Rocha de Barros Foto: Chico Cerchiaro/Divulgação
Qual a dimensão histórica para o Brasil do julgamento da tentativa de golpe?
É imensa. Pela primeira vez em nossa história, os responsáveis por uma tentativa de golpe de Estado serão presos. Se nem o Congresso nem Trump abortarem esse avanço civilizatório, os golpistas do futuro, inclusive do futuro próximo, saberão que a democracia brasileira passou a ter dentes, que o risco de se darem mal será muito mais alto do que foi até hoje. Mas não devemos interpretar essa vitória da democracia como um sinal de que as instituições foram plenamente capazes de conter o autoritarismo. O STF cumpriu o papel que os constituintes de 1988 lhe deram. Mas o Congresso deixou Bolsonaro terminar seu mandato mesmo depois da primeira tentativa de abolir o Estado de Direito, o discurso no 7 de Setembro de 2021. E a ameaça de uma anistia que desfaça o bom trabalho do STF é real: há ladrões e oportunistas suficientes no Congresso dispostos a se aliarem aos golpistas se isso for de seu interesse financeiro. Continua havendo uma bancada do golpe no Congresso, que o Judiciário errou feio em não incluir no julgamento dessa semana. Procure o vídeo da reunião de 30 de novembro de 2022 no Congresso, presidida por Eduardo Girão, para ver o quão envolvidos estiveram os políticos bolsonaristas no processo golpista. São esses os que conduzem a luta pela anistia. Enfim, foi uma grande vitória da democracia brasileira, mas a luta contra o golpe ainda não está ganha. Talvez só acabe mesmo quando Trump deixar o poder.
Foram condenados um almirante e generais, ex-comandantes. Como a caserna deve reagir?
Até agora reagiram com serenidade, como se deveria esperar das Forças Armadas de um país democrático. É bom lembrar também que, se o golpe tivesse dado certo, os oficiais que se opuseram a ele teriam sido fuzilados. Braga Netto, Paulo Sérgio Nogueira, todos tentaram derrubar os comandantes que não aceitaram participar do golpe. Não sei se essa turma ainda desperta tanta simpatia entre seus pares.
O STF agiu bem em enaltecer as Forças Armadas ao fim do julgamento?
Acho que sim. Por mais críticas que se possa fazer aos militares brasileiros, eles não aderiram ao golpe. Se tivessem aderido, não teria havido julgamento dos golpistas, teria havido fuzilamento dos democratas. Claro, não aderir ao golpe é o mínimo que se espera de Forças Armadas de um país democrático. Mas no contexto brasileiro é algo que merece elogio.
Tarcísio de Freitas foi tachado por Lula de serviçal de Bolsonaro. Quanto essa pecha tende a pegar de fato? E quanto afeta as chances de Tarcísio vencer num segundo turno?
Depende do próprio Tarcísio. Se ele continuar submisso ao Bolsonaro, vai afastar eleitores de centro. Não é muita gente, mas a última eleição foi decidida por menos de dois pontos percentuais. E mais: quando ele discursou contra o STF na Paulista, prometeu causar uma crise institucional assim que tomar posse como presidente. A quem interessa isso, a essa altura do campeonato? Finalmente, não é bom para um candidato a líder ter tão pouca iniciativa quanto Tarcísio está tendo diante de Bolsonaro.
Bolsonaro tem um eleitorado fiel de 30%. Qual será a resposta dessa parte da sociedade? Você prevê tempos de tensão ou o julgamento é um passo para a pacificação?
Quem radicalizar contra a decisão é porque já estava radicalizado. Existem dois lados nessa história: o do STF e o do golpe. Em geral, problemas políticos complexos têm várias áreas cinzentas. Não é o caso aqui. Esse é outro problema para Tarcísio: o eleitorado bolsonarista é moderável? O que modera movimentos políticos é a falta de alternativa à moderação. Enquanto esse público tiver esperança de anistia pelo Congresso, ou por um futuro governo, ou, ainda, enquanto os bolsonaristas tiverem esperança de ajuda americana, ainda terão alternativas à moderação. Enquanto houver esperança de golpe ou intervenção americana, os radicais não vão moderar.
O julgamento célere ajuda a direita a se preparar para a eleição, escolhendo o sucessor de Bolsonaro. Essa ala da direita e da centro-direita devem de fato se empenhar pela anistia ou é jogo de cena?
Deve ser uma mistura dos dois, mas qual a importância disso? Tanto faz se o sujeito é golpista por corrupção ou oportunismo. O que interessa é o que você faz, não o que se passa nas profundezas da sua alma. Caiado, Tarcísio e Zema podem saber que o STF tem razão, mas se continuarem se comportando como se não soubessem, dá na mesma.
O voto de Fux abriu o caminho para uma futura anulação ou o STF deu mostras de que não?
O voto de Fux é jurídica, moral e intelectualmente indigente. Se alguma Corte aceitar aquilo como argumento, é porque já se rendeu ao golpismo, voluntária ou involuntariamente. No momento, nada disso parece possível. Mas, se um novo governo encher o STF de ministros pró-golpe, ou conseguir intimidar os que estão lá, as coisas podem mudar.
A condenação a quase três décadas de prisão manda alguma mensagem a futuros arroubos autocráticos ou cada golpe é um golpe?
Sem dúvida. Mostra que a democracia brasileira sabe se defender contra seus agressores. Os bolsonaristas atiraram contra a democracia erraram, e agora ela está atirando de volta. Essa democracia com dentes muda muito o cálculo dos golpistas em potencial.
Qual sua expectativa em relação à anistia no Congresso?
É difícil saber. A pressão é grande, mas o custo de aprovar uma anistia também é. A maioria da população é contra e tem eleição ano que vem. Seria uma declaração de guerra aos eleitores de Lula — a maioria do eleitorado em 2022 — cujos votos Bolsonaro tentou roubar. O efeito de longo prazo para a credibilidade das instituições, em especial dentro da esquerda, seria devastador: qual o sentido de jogar dentro das regras se o outro lado tem imunidade? A anistia encorajaria Trump a continuar sancionando os produtos brasileiros, porque, afinal, a pressão pareceria estar funcionando. E mais: a anistia fortaleceria candidatos de extrema direita na próxima eleição que facilmente venceriam os deputados do Centrão que estão lá agora.
Exercício de futurologia: o que será feito de Eduardo Bolsonaro?
Em um mundo ideal, ele nunca mais pisaria em solo que não pertencesse ao sistema prisional brasileiro. No momento, conspira com potência estrangeira para governar o Brasil como marionete de Trump. As chances disso dar certo são muito pequenas, mas ele talvez escape da prisão se continuar nos Estados Unidos. Deve se integrar com a turma do Bannon e se tornar um guru picareta de Internet como Olavo de Carvalho.