Começa nesta terça-feira, 2, um julgamento com peso histórico para o Supremo Tribunal Federal. A presença de um ex-presidente entre réus acusados de tentar um golpe de Estado reafirma os princípios democráticos da Constituição de 1988, escrita em contraponto a duas décadas de ditadura. A formação de Jair Bolsonaro no Exército, a presença de chefes militares entre os réus e a expressiva participação de integrantes das Forças Armadas em seu governo reforçam o simbolismo das sentenças que serão produzidas por uma corte civil.

O julgamento vai decidir o futuro pessoal e político de Bolsonaro, único militar eleito presidente da República no atual período democrático do país. Por descumprir medidas restritivas, ele se encontra há mais de um mês em prisão domiciliar, em um condomínio em Brasília. A condenação pela Primeira turma do STF, palco do julgamento, é tida como certa, mesmo no círculo mais próximo do ex-presidente. Nesse ambiente tenso, o Supremo reforçou a segurança para as próximas semanas.

Os processos decorrentes da trama golpista colocaram mais de mil brasileiros nos bancos dos réus, entre eles os seguidores de Bolsonaro que participaram do 8 de Janeiro. O STF se ocupa a partir desta semana dos 31 líderes,  entre eles 22 militares, divididos em quatro núcleos. Todos passaram pelos devidos processos legais e poderão recorrer contra as sentenças. Será a primeira vez que membros dos altos comandos das Forças Armadas podem ser condenados por crimes em tribunal civil. Todos ainda devem enfrentar a Justiça Militar.

A Primeira Turma vai dedicar oito sessões ao “núcleo 1”. Desse grupo fazem parte Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid (ex-ajudante de ordens, delator do processo), Alexandre Ramagem (deputado pelo PL-SP, ex-diretor da Abin), almirante Almir Garnier (ex-comandante da Marinha), Anderson Torres (ex-ministro da Justiça), general Augusto Heleno (ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional), general Paulo Nogueira (ex-ministro da Defesa) e o general Braga Netto (ex-ministro da Casa Civil).

O “líder” da organização criminosa
Com mais de 500 páginas, a denúncia da Procuradoria-Geral da República coloca o ex-presidente com participação ativa na trama, na posição de “líder” da organização criminosa e maior beneficiário do plano que tinha como objetivo final impedir Lula de assumir o governo. A tentativa de permanência de Bolsonaro no Planalto, em afronta aos princípios constitucionais de alternância do poder pela força do voto, foi tentada de três formas: pela força, com uso do Exército, Marinha e Aeronáutica – braço armado essencial, que ele não obteve -, ou pela caneta, via decreto de intervenção no Judiciário, ou pela violência, com planos de prender e até matar o presidente e o vice eleitos e o ministro Alexandre de Moraes.

A PGR relaciona nove episódios que culminaram no fatídico 8 de Janeiro, com as invasões e quebradeira na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Fatos que começaram ainda em meados de 2021 como partes de um plano golpista enredado e coordenado por Bolsonaro, junto com os demais réus. Nessa lista, estão: a divulgação de falsas notícias sobre o sistema eleitoral, uso de milícias digitais, bloqueios em rodovias, acampamentos na frente dos quartéis, planos de monitoramento e atos violentos contra autoridades, documentos de ordens legais para intervenção, reuniões e atos de conspiração.

O ex-presidente e os outros réus declararam inocência e pediram absolvição. Os advogados alegam falta de provas sobre os crimes e, principalmente, de comprovação de participação do ex-presidente nos fatos, em especial, em atos violentos que envolveram militares das Forças Especiais, os chamados “kids pretos”. O fim da ação e o decreto de sentença não encerram completamente o caso. Na hipótese de confirmação das condenações, as defesas vão recorrer das sentenças.

O avanço da direita
O enfrentamento ao Supremo, em particular ao relator, e a ajuda obtida do governo dos Estados Unidos para as pressões contra a condenação de Bolsonaro elevaram a temperatura do processo. A interferência de Donald Trump conferiu maior relevância internacional ao caso. A ofensiva envolveu retaliações econômicas ao país, a autoridades brasileiras e até a ministros do governo e do STF.

O empenho do governo americano em favor de Bolsonaro faz parte de um fenômeno global: o avanço crescente da direita radical no mundo, em particular na Europa, na América do Sul e nos Estados Unidos. Com reflexos externos, o julgamento atraiu cerca de 30 veículos de comunicação estrangeiros para a cobertura jornalística.

Desde a promulgação da Constituição de 1988, o STF esteve no centro de outros processos de grande repercussão política. O maior julgamento da história do Supremo foi sobre o mensalão, em 2012, escândalo do primeiro governo Lula. Foram mais de 40 réus e 53 sessões no plenário até a proclamação das sentenças. Entre os condenados à prisão, estavam o ex-presidente do PT José Genoino, o ex-ministro José Dirceu (Casa Civil), e Valdemar da Costa Neto, presidente do PL, atual partido de Bolsonaro.

A Operação Lava Jato, também com vários processos e com réus do primeiro escalão da política, teve casos decididos pelo STF, mas não houve um julgamento geral, de importância comparável ao mensalão e à trama golpista. 

Invasão às sedes dos poderes, em 8 de Janeiro de 2023, em Brasília

Invasão às sedes dos poderes, em 8 de Janeiro de 2023, em Brasília

O roteiro da Primeira Turma
“Declaro aberta a sexta sessão extraordinária da Primeira Turma, de 2 de setembro de 2025.” Assim o ministro Cristiano Zanin, presidente do colegiado abre nesta terça-feira, às 9 horas, o julgamento de Bolsonaro e dos outros sete réus do “núcleo 1”. O auditório estará com as 126 poltronas ocupadas. Nas primeiras filas, os réus e advogados. Nas demais estarão 80 jornalistas brasileiros e estrangeiros e cidadãos que se inscreveram para assistir – foram reservadas oito sessões, em cinco dias. 

Depois de Zanin, fala Alexandre de Moraes. O relator fará a leitura de resumo do processo, sem emitir valor ou adiantar seu voto. A peça será detalhada e incisiva, destacando a denúncia da PGR, os crimes, provas, contestações das defesas, depoimentos e toda instrução processual.

O ação penal 2668, em julgamento, e o inquérito foram conduzidos por Moraes. A atuação do relator como parte ativa da investigação é questionada desde o início pelas defesas, sem sucesso na tentativa de tirar o caso da Primeira Turma. Do colegiado, além do presidente e do relator, fazem parte os ministros Luiz Fux, Cármen Lúcia e Flávio Dino. 

Na sequência, a acusação e a defesa se manifestam. O procurador-geral da República, Paulo Gonet, apresenta sua “sustentação oral” na sequência da leitura do relatório de resumo do caso por Moraes, e pontuará crimes, provas e os argumentos legais para a condenação do “líder”. A acusação apontou digitais do réu no planejamento e nos atos de execução, orquestrados nos palácios presidenciais e em unidades das Forças Armadas.

Nesse aspecto, a peça acusatória carrega a inovação de, pela primeira vez, usar a tipificação dos crimes prevista na lei 14.197, de 2021, sancionada por Bolsonaro e que introduziu os crimes contra a democracia no código penal. A pena por essa infração vai de quatro a doze anos.

Os réus são acusados por tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, organização criminosa armada, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. No total, a condenação pode chegar a 43 anos de prisão, acima dos 40 anos estipulado como tempo máximo de reclusão para um condenado.

O foco da defesa
Pela defesa de Bolsonaro, o criminalista Celso Vilardi – que já advogou para réus da Lava Jato e do mensalão – faz a apresentação verbal. Além de tentar livrar o cliente da condenação pelos dois crimes contra a democracia, o foco do advogado será invalidar provas documentais. A delação premiada de Mauro Cid também será alvo, para enfraquecer elos do ex-presidente com o 8 de Janeiro e os crimes violentos – um deles, a tentativa de prender e até matar o ministro Alexandre de Moraes, então presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), registrada no “Plano Punhal Verde e Amarelo” e na missão “Copa 2022”.

Bolsonaro quer garantir direito a regime domiciliar, pelo menos, como teve o ex-presidente Fernando Collor. No campo jurídico, a nova lei de crimes contra a democracia deve dominar o debate. O uso dela será inédito e acusação e defesas devem abordar o tema sob perspectivas antagônicas.

O entendimento sobre aplicação da lei pode gerar divergências entre os ministros. Considerado possível voto contrário ao da maioria da Primeira Turma, o ministro Luiz Fux tem dado sinais de que essa é uma das controvérsias do caso. Para ele, o STF tem que definir se a interpretação a ser estabelecida a partir deste julgamento será “punitivista” ou “garantista”.

Pelo cronograma, o voto do relator e dos outros quatros ministros serão dados na segunda semana do julgamento. 

Ministro Alexandre de Moraes durante sessão Solene de Abertura do Ano Judiciário do STF.

O futuro do ex-presidente
Bolsonaro é presença ainda incerta nas sessões de julgamento. A vontade expressa por ele a aliados é a de ouvir a sentença no plenário da Primeira Turma. Se comparecer, não poderá usar com farda, proibição imposta também aos demais militares. Com a condenação praticamente certa, o ex-presidente aguarda a definição do tempo de prisão e das demais penas, como perda de direitos civis e até militares.

A sentença do ex-presidente e maior líder da direita radical no Brasil é prevista para sair nos próximos dez dias. Aos 70 anos e com problemas recorrentes no intestino, ele diz que não tem mais idade nem saúde para “puxar uma cana” – termo popular para ficar preso. Por decisão tomada em 2023 pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), ele se encontra com os direitos políticos cassados até 2030, mas ainda age como candidato ao Planalto em 2026.

O resultado do julgamento vai definir o futuro de Bolsonaro e, também, do campo direitista. Os aliados aguardam o resultado da ação no STF para fechar alianças em torno de nomes que, com a perspectiva de uma provável condenação do líder, disputam os votos dados a ele nas últimas eleições.