Se vivêssemos nos tempos em que a TV era soberana como praticamente a única mídia a levar informação à casa dos brasileiros durante a noite, a maioria do país teria assistido no telejornal da noite às cenas históricas dos depoimentos de testemunhas no julgamento de Jair Bolsonaro. Mas, no estado atual da dieta de mídia do brasileiro (e do restante do mundo), o julgamento está sendo consumido de maneira diferente. A TV, os jornais, as rádios ainda fazem seu papel. Mas o grosso da população verá o julgamento em trechos selecionados das audiências, a partir das redes sociais em cortes editados (e editorializados). Só que, agora, a edição não é só enviesada à direita, à esquerda, ou mais neutra, como sempre ocorreu, de acordo com o viés do veículo de imprensa A, B ou C da mídia tradicional.
Isso muda de maneira fundamental a percepção que prevalecerá na sociedade sobre se o Supremo terá ou não feito justiça ao fim deste caso — uma assunção que não ficou tanto em disputa em outro julgamento histórico, como o do Mensalão.
Agora, existe uma massa expressiva de brasileiros que não consome jornalismo profissional, ou seja, aquele que não se afasta dos fatos como objeto central. Mesmo podendo ter viés editorial, para o lado que for, o jornalismo profissional não mente, não deturpa, não inventa. Pode errar aqui e acolá, e, se for de fato profissional, vai corrigir. Mas não trabalha com ficção.

Mauro Cid, delator, cumprimenta Bolsonaro
Nos mundos paralelos das redes sociais, a gravidade não tem o mesmo valor do mundo real em que o jornalismo é obrigado, por ofício, a operar. Lá, é possível criar ficções do tipo “Bolsonaro inventou a facada” ou “Xandão está perseguindo Bolsonaro e ele é um democrata”.
Peguei dois exemplos, na esquerda e na direita, apenas para lembrar que existe gente que viaja em outra dimensão nos dois lados do espectro político. Mas o que me interessa aqui é analisar a situação em que se encontra a parte significativa da sociedade brasileira que segue com Bolsonaro haja ou que houver — algumas pesquisas apontam que seriam 30% da população, outras indicam algo em torno de 35%.
Essa turma, mesmo diante da força dos depoimentos de segunda-feira, 9, e dos demais que virão nos próximos dias, seguirá querendo Bolsonaro. Em parte, por ver nele uma negação de Lula. Ou porque ainda acreditam no mito do homem que se sacrificou em nome do país. Que sobreviveu a uma facada por escolha divina. Que não rouba e não deixa roubar. Que só pensa no bem da família, da pátria e por aí vai.
Há anos acostumados a uma dieta informacional e ao convívio principalmente com quem pensa como eles — nos grupos de WhatsApp e na vida real —, eles não conseguem (e talvez nunca mais conseguirão) sair das profundezas dessa realidade paralela e emergir de volta para o mundo real.
Bolsonaro e seus principais comparsas no golpe serão condenados. Acertadamente: aos golpistas, o Brasil tem que oferecer a Justiça, algo que nunca fizemos, mas que precisamos fazer agora, sob pena de não se ter outra chance. Mas também precisaremos lidar com o fato de que, após tudo isso, mesmo com eles condenados e presos, ao menos um terço do país seguirá sem acreditar que foi feito justiça. Odiarão Xandão e o STF. E só com o tempo saberemos como vão canalizar essa frustração.