Jornalista, escritora e tradutora premiada de nomes como Balzac, Proust e Italo Calvino, Rosa Freire D’Aguiar deixou o Brasil ainda jovem para viver em Paris, onde acompanhou de perto transformações históricas que marcaram a segunda metade do século XX — da transição espanhola para a democracia ao sindicalismo polonês, passando pela revolução islâmica no Irã. A autora, viúva do economista Celso Furtado, também entrevistou gigantes da cultura, como Julio Cortázar, Roland Barthes e Ernesto Sábato.
Autora de “Sempre Paris – Crônica de uma cidade, seus escritores e artistas”, vencedor do Prêmio Jabuti em 2024, Rosa transformou memórias pessoais e encontros inesquecíveis em retrato vivo de uma época. Essa travessia entre política, literatura e memória foi o fio condutor de uma conversa da escritora com o Lisboa Connection, videocast do canal Amado Mundo.
Leia a seguir, os principais trechos da entrevista. Assista à íntegra em vídeo ao fim do texto.
Em que momento percebeu que começava uma nova vida em Paris?
Eu trabalhava como jornalista no Rio, em plena ditadura, e tinha um namorado desaparecido. Surgiu uma vaga em Paris e fui, com minha mala pesada e a máquina de escrever. Paris, comparada ao Rio do governo Médici, me deu uma sensação imediata de liberdade. Embora, na minha primeira manifestação na cidade, tenha ficado olhando para os lados, achando que apareceriam agentes do DOPS ou do SNI. Aos poucos, Paris me adotou e desde então minha vida ficou dividida entre lá e cá.
Como era fazer jornalismo nos anos 70 e como vê as mudanças de hoje?
Tinha um lado bom e outro complicado: era pré-Google, pré-Wikipedia e as pesquisas dependiam de contatos. Eu ainda não conhecia nada. Comecei a comprar jornais e recortar matérias para organizar pastas sobre os assuntos com os quais trabalhava. Por outro lado, as matérias eram imensas, publicamos entrevistas de 10 páginas, algo inimaginável hoje. A internet mudou tudo: agora você acessa, em tempo real, o que acontece do outro lado do mundo.
O que acha do desdém pela Europa, vista por muitos como colonizadora?
Acho curioso quando se fala da Europa como um bloco único, o que não é. O colonialismo é óbvio, a Europa foi o continente mais colonialista. A França tem problemas sérios com imigrantes do Norte da África, reflexo de um passado colonial marcado pela guerra da Argélia, diferente da Inglaterra, que saiu do colonialismo sem conflitos. Esse ressentimento persiste e piora com a ascensão da extrema-direita. Mas imagine se o Brasil tivesse 25 milhões de imigrantes. Acha que não haveria racismo aqui? É simplista dizer que a Europa é apenas colonialista ou que caminha inevitavelmente para a extrema-direita.
Como era a Paris com Celso Furtado?
Cheguei a Paris e conheci Celso uns sete ou oito anos depois. Havia cerca de quatro mil brasileiros na França, principalmente estudantes, professores e exilados políticos. Eu convivia muito com os exilados, incluindo Celso, que era retraído, nascido na Paraíba. A Paris que ele conhecia era a Sorbonne, onde foi professor por mais de 20 anos. A minha era cheia de festas, gente tocando violão e feijoada. O Celso ficou mais maravilhado com o meu mundo do que eu com o dele, e houve uma fusão de experiências.
Quais lembranças você guarda da transição espanhola e como compara com a do Brasil?
Foi uma das coberturas internacionais mais gratificantes que fiz. Fui acompanhar a posse de Juan Carlos, criado para perpetuar o franquismo. Em 1981, houve uma tentativa de golpe militar, e ele, mostrando-se um democrata convicto, desarmou o golpe e passou a ser admirado. Fiquei fascinada pelo Pacto de Moncloa, um acordo entre o centrão espanhol e as forças políticas, inclusive o Partido Socialista. Depois, as conquistas seguiram: o Partido Comunista voltou, houve uma nova constituição e uma grande reforma nas forças armadas. No Brasil, questões como a GLO ainda mostram que o problema não está resolvido.
A Europa deveria temer a Rússia?
Vejo que estamos num momento importante pós-Guerra Fria. A polarização deve voltar entre Washington e Moscou, com a China entrando no jogo. A Otan terá menos importância, embora ainda relevante, e pedidos de aumento de orçamento militar refletem tanto a Otan quanto os fabricantes de armas. A China avançará gradualmente, “comendo pelas beiras”, já que quase tudo é made in China. A Europa, por ora, é espectadora, tentando defender o que pode.
Você entrevistou o Ayatollah Khomeini em plena Revolução Islâmica. Como foi ver o contraste entre discurso e realidade?
Uma decepção. Quando Khomeini chegou à França, instalou uma espécie de quartel-general, com civis da Revolução Iraniana, entre eles Bani-Sadr, ex-aluno do Celso, que virou presidente do Irã, e começou a receber jornalistas. Acreditei na promessa de libertação das mulheres e publiquei duas matérias, uma geral e outra sobre o papel feminino. Foi falta de visão não perceber o papel central da religião no projeto. Após o retorno de Khomeini em 1979, veio o fundamentalismo xiita, e a situação se deteriorou, com relatos horríveis de violência contra jovens mulheres presas.
Você cita Gertrude Stein, dizendo que Paris é muito mais do que nos dá, mas o que ela não nos tira. Em 2025, o que Paris ainda preserva para nós?
Paris não nos tira o que a caracteriza. Uma das suas marcas é o sentimento de liberdade. Ando por Paris e me sinto completamente livre. Gosto do contraste da cidade: avenidas movimentadas e cosmopolitas, mas também ruazinhas e praças tranquilas, que parecem de cidade do interior. Paris mantém riqueza cultural, ligada à vida da cidade, ao desenvolvimento e ao projeto nacional. Vivi isso de perto, inclusive sendo casada com Celso, que foi Ministro da Cultura, e desenvolvi uma noção ampla da cultura como prima-irmã da liberdade e da democracia.
Qual foi a entrevista mais difícil de fazer?
Todas tinham o problema de como chegar à pessoa e sobre o que conversar. Com Romain Gary, por exemplo, tive que fazer uma entrevista rápida, lendo dois ou três livros dele às pressas. Foi bonita, mas não fácil. Outras foram maravilhosas, como a do Cortázar, que foi política, porque ele havia se tornado exilado argentino em 1978. Perguntei: “O que poderá a literatura contra um ditador ou contra uma extrema-direita forte?”, já que ainda estávamos na ditadura no Brasil. Ele respondeu: “Nada. Um poeta jamais derrubou um tirano”. Mas os poemas se acumulam, formando um pedestal poético que derruba o tirano. Quando vivemos a fase negra aqui, entre 2018 e 2022, pensei muito nisso e continuo pensando.