As investigações sobre o esquema de venda de sentenças no Superior Tribunal de Justiça (STJ), a segunda mais alta corte do país, envolvem nomes de outras autoridades graúdas da cúpula do Judiciário que, até agora, ainda não haviam aparecido.
Há dúvidas, especialmente pela menção a figuras de relevo, se o caso vai avançar – a aposta entre os investigadores a cargo do trabalho é de que as punições irão alcançar, se muito, a arraia miúda do esquema.
Por óbvio, o surgimento dos nomes das autoridades na investigação não significa, necessariamente que elas estejam envolvidas, muito menos que sejam culpadas. Mas, por si só, o fato de elas estarem mencionadas já torna o caso um dos mais sensíveis envolvendo magistrados na história recente de Brasília.
O escândalo, sob investigação agora na Polícia Federal, na Procuradoria-Geral da República e no Supremo Tribunal Federal, começou a ser desenrolado a partir dos arquivos encontrados no celular do advogado Roberto Zampieri, assassinado a tiros em dezembro de 2023 em Cuiabá.
Depois de muita resistência por parte de integrantes da Justiça local, promotores conseguiram acessar o conteúdo do telefone, encontrado pelos peritos ao lado do corpo.
Estava, enfim, explicado por que havia tanto temor em torno do aparelho: em centenas de mensagens e comprovantes de pagamentos havia o mapa detalhado de um complexo esquema que envolvia não só magistrados mato-grossenses como também acesso privilegiado a vários gabinetes do STJ, em Brasília.
Decisões de quatro ministros da corte – Isabel Gallotti, Og Fernandes, Paulo Moura Ribeiro e Nancy Andrighi – eram antecipadas a lobistas e advogados em uma espécie de mercado paralelo do Judiciário. Em algumas situações, chegavam a ser modificadas por integrantes do esquema, do qual Zampieri, o advogado assassinado, era parte.
Os arquivos revelaram a existência de uma rede que funcionava com a participação de funcionários-chave dos gabinetes do STJ. Eles compartilhavam as decisões que viriam a ser assinadas pelos ministros. Por vezes, conseguiam fazer com que elas saíssem de acordo com o interesse dos clientes, que pagavam caro pelo “serviço”.
Em alguns casos, uma única decisão custava R$ 500 mil. De acordo com investigadores a par do caso, a quadrilha movimentou nos últimos anos valores que, somados, alcançam dezenas de milhões.
Não há evidências de que os ministros participavam ou tinham conhecimento do funcionamento da rede. Como antecipou a revista Veja na última sexta-feira, porém, o nome de um ministro, Moura Ribeiro, aparece em um relatório do Coaf, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras, ligado a transações consideradas suspeitas com um intermediário do esquema. Ele está sob investigação.
O caso vem causando pânico entre personagens relevantes do universo jurídico pelo potencial de abrir um flanco até hoje pouco explorado pelos órgãos de investigação.
O PlatôBR teve acesso a documentos ainda sob sigilo que mostram que há mais autoridades da cúpula do Judiciário citadas nas mensagens.
Uma delas é o ministro do STJ e até o mês passado corregedor nacional de Justiça Luis Felipe Salomão – responsável, por sinal, por solicitar ao Ministério Público Federal uma investigação criminal sobre o esquema quando estava à frente da Corregedoria, órgão integrante do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
O empresário Andreson Gonçalves, que fazia as vezes de intermediário em Brasília entre os clientes do esquema e os funcionários do tribunal, pergunta a Zampieri, o advogado assassinado no ano passado em Cuiabá, quanto um cliente dele pagaria “para Salomão ir com a gente e depois a Galotti”.
Ele se referia aos votos dos ministros Luis Felipe Salomão e Isabel Gallotti em um caso em julgamento no STJ. O processo em questão tinha a relatoria de Gallotti. Salomão votaria depois. Na mesma sequência de mensagens, Andreson compartilha duas minutas de decisões que ainda seriam assinadas pela ministra.
Em um dos expedientes elaborados para pedir investigação sobre o assunto quando era corregedor nacional de Justiça, o próprio Salomão se antecipa e nega peremptoriamente qualquer ligação com integrantes da quadrilha. Diz que a parte relacionada ao seu nome é “venda de fumaça”.
Escreveu ele: “Em relação à referência à minha pessoa, a atuação do Sr. Andreson Gonçalves não passa de exploração de prestígio (‘venda de fumaça’, no jargão criminal)”. “Porém, os dois documentos enviados por Andreson a Roberto Zampieri denotam que, de fato, há alguém no gabinete da eminente ministra Isabel Gallotti que, no mínimo, repassa a terceiros material de uso interno”, prossegue o ministro.
A mensagem foi enviada por Andreson a Zampieri em 28 de outubro de 2019. As duas decisões de Gallotti, em recursos especiais que envolviam dois bancos, só foram assinadas no dia seguinte e publicadas uma semana depois.
Pelo menos mais quatro nomes de ministros de tribunais superiores são mencionados nas mensagens recuperadas durante a investigação. Esses, porém, não aparecem no documento elaborado por Salomão. O ministro disse a interlocutores que não adotou essa providência por não haver nada mais concreto, e que fez questão de citar a menção a seu próprio nome para ser "transparente" e "isento".
Há, no material em poder das autoridades, situações em que até decisões tomadas em processos em segredo de justiça, como ordens de prisão e autorização para busca e apreensão, eram obtidas com antecedência pela quadrilha.
No conjunto de mensagens recuperadas no celular do advogado assassinado e agora sob análise da Polícia Federal e da PGR há menção a outros nomes. Dentre eles surge mais um personagem importante do cenário político-jurídico de Brasília. Trata-se de Luiz Fernando Bandeira de Mello, ex-secretário-geral da Mesa Diretora do Senado Federal que, em desde 2021 ocupa uma das vagas de conselheiro do CNJ, por indicação do Congresso Nacional.
Bandeira de Mello aparece em contato com um dos intermediários do esquema, tratando de processos em andamento. A pessoas próximas, nos últimos dias, ele disse que trocava mensagens com o investigado porque tem por hábito atender a todos que o procuram. Advogado, ele foi secretário-geral da Mesa do Senado, principal cargo da burocracia da casa, sob a presidência de Renan Calheiros (MDB), a quem é ligado.
Ao PlatôBR, o conselheiro disse não ter “relação pessoal ou profissional com Andreson Gonçalves, salvo encontros eventuais em posses ou lançamentos de livros”.
Em nota, a assessoria do CNJ afirmou que em abril de 2022 “o senhor Andreson enviou por mensagem uma reportagem, perguntando se o conselheiro tinha conhecimento de processo tramitando no CNJ sobre um magistrado citado na reportagem” e que, em resposta, Bandeira de Mello “simplesmente informou que não havia procedimento”. “Essa informação não é sigilosa e qualquer pessoa pode obtê-la oficialmente. Não houve outras perguntas ou pedidos formulados ao conselheiro”, diz ainda o texto.
No Supremo Tribunal Federal, tão logo a PGR decida avançar nas investigações, as suspeitas envolvendo o tráfico de decisões do STJ estarão sob a relatoria do ministro Cristiano Zanin. O PlatôBR apurou que a distribuição se deu por prevenção, uma vez que Zanin já tinha em seu gabinete pelo menos um caso conexo, sob sigilo, envolvendo figuras com foro privilegiado cujos nomes aparecem também nas mensagens da quadrilha.